quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Escala de cinza

Li um texto de Arthur Dapieve, espantoso de bom (não que me espante o fato de o autor escrever bem): “O traficante tranquilo”, publicado sexta passada no Segundo Caderno. Dapieve cita a entrevista feita por Ruth de Aquino com o traficante Nem (saiu na Época), na qual o moço, capaz das maiores perversidades no crime, se mostra também educado, polido, simpático, pai amoroso, encaminhador de viciados para tratamento e, pasmem, elogiador das UPPs e do secretário José Mariano Beltrame. Que em algum(ns) momento(s) mentiu, é óbvio. Mas mentiu a sério. Mentiras sinceras. Não agiu com descarado cinismo, mostrou apenas facetas outras, igualmente reais no instante em questão. A entrevista por isso causa incômodo, inclusive em Arthur Dapieve, que destrincha com habilidade o sentimento: “Temos enorme dificuldade de transitar num mundo onde há coisas pretas e brancas, sim, mas no qual a maioria se apresenta na infinidade dos cinzas. Assim, é menos perturbador pensar no Nem unidimensionalmente mau do que no Nem humanamente complexo, capaz [...] de amar a filha doente e de ordenar a execução de dezenas de pessoas [...]. O aparente paradoxo não torna mais fácil a nossa vida. A existência de um Mal e de um Bem metafísicos, absolutos, nos eximiria de refletir sobre nossos atos”.

Creio em Bem e Mal, sim, porém sei que emprateleiram ações e não agentes. Gestos, e não pessoas. Queremos por força enfiar o pacote completo numa despensa única: Fulaninho está no altar desde já, Sicraninho é um filhote de cruz-credo, sei nem o que está fazendo na terra que não desce de uma vez para os quintos. O problema é que Fulaninho – o aluno exemplar – passou a noite na balada, não relou num livro e, para manter a fama de bom, colou na prova de Química. E Sicraninho – o apocalipse da sala –, quando não está infernizando professores e colegas, se enfia na biblioteca para ler Monteiro Lobato e vai com a mãe servir sopão nos finais de semana à noite. É pra endoidecer? é. Porque este mundo não é coisa para amadores. Não é para gente que quer resolver logo o assunto da arrumação de pessoas, põe esse pra cá, aquele pra lá e fim de papo. Se há caixinhas, há caixinhas para cada pedaço de gente. Cada lado. Cada trecho. Adianta nada olhar da superfície: tem que ir às profundezas, dissecar, e ainda assim surge informação após a autópsia.

Ronaldo Bôscoli, mencionado na reportagem de capa do mesmo Segundo Caderno, era cafa com as mulheres, não gostava de briga física, língua ferina, amigo leal, crianção e descompromissado, compositor devotíssimo à bossa nova, capaz de demolir alguém com palavras e de socorrer desapegadamente qualquer um que precisasse. Um enigma. O Hitler vivido por Bruno Ganz em A queda (também citado por Dapieve), sem deixar de ser Hitler, amava os animais, dividia refeições e ternuras com os subordinados. O traficante Escadinha, igualmente comentado no texto, chamou à prisão os produtores da Rede Globo somente para alertá-los: tivessem cuidado com a crueldade dos então novos chefes do tráfico (Tim Lopes comprovou a crueldade na carne, infelizmente). Médicos ou monstros? lá e cá, embora não gostemos de admitir o que não facilita nosso trabalho de inventário. Conforme declarou brilhantemente o autor: “Para elas [as mentes maniqueístas], reconhecer alguma humanidade – e talvez até alguma qualidade – no inimigo equivaleria a ver afrouxada a sua disposição para combatê-lo”.

Brasileiros, especialmente, amam ou odeiam. Têm a impaciência emocional, infantil, de acolher ou linchar na mesma catarse. É fria. Enquanto vivos, somos todos mezzo, mezzo; escalas de cinza mais ou menos indecisas, prestes a mudar aos 48 do segundo tempo. Só depois da saideira é que dá para fazer os noves-fora, fechar a conta e passar a régua.

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