Chama-me a atenção um comercial que passa no (adivinha!) Discovery H&H, anunciando documentário para o próximo domingo. Nome insólito: O menino que nasceu menina. História de uma moça que tem aos poucos se transformado em rapaz. Mas o que particularmente me chama a atenção (não bastasse o inusitado do tema) é uma fala da mãe do jovem: “A felicidade dele é parte de minha dor. Minha filha está desaparecendo fisicamente”. Nos olhos da mãe, uma agonia de dilema amoroso – querer bem ao menino que acabou de ganhar ou guardar luto pela menina que perdera. Nos olhos da mãe, uma encruzilhada de nascimento e de aborto.
Não discuto aqui a questão ético-moral de uma mulher tornar-se homem, seus vice-versas e suas implicações. Discuto uma única implicação: o aborto de sonhos a que determinado quesito da felicidade alheia às vezes nos obriga. O que precisa morrer emocionalmente em nós para que haja, em outrem, espaço para um nascer desejado. É punk. Tão punk que, nos corações com bueiro entupido – aqueles que lotam lotam lotam até regurgitar, na primeira oportunidade de chuva, o bando de frustração engolida –, o mais certo é não dar certo. Fez-se a renúncia, fez-se a concessão, fez-se a tentativa de adaptação interna. Mas não se fez a fundação convicta, não houve perdão devidamente acreditado pelo perdoante (porque é trabalho enormíssimo de perdão pôr o outro em liberdade não-condicional de nossas expectativas).
Não acredito lá muito, por exemplo, em renúncia de fora para dentro. Digamos: o marido/ a esposa foi transferido(a) para outra cidade ou país, e o que ganha menos abrirá mão de sua carreira construída e idolatrada para acompanhar o (financeiramente) mais bem-sucedido. Me desculpe, é fria. É fria na medida em que o acompanhante não colocar a mão interior sobre a Bíblia e garantir-se, com pureza d’alma, que nunca, nunquíssima, nunca de núncaras jogará na cara do outro o tanto de desapego que precisou ter para permitir seu desenvolvimento profissional. Nunca com palavras, nunca com gestos, nunca com muxoxos, nunca com sarcasmos, nunca com indiretas, nunca com ironias, nunca com semanas de gelo, nunca com noites no sofá, nunca com perdas gratuitas de paciência, nunca com gritos, nunca com silêncios. Só acredito nesse tipo de arranjo sob voto perpétuo, registrado em cartório espiritual, de que o renunciante enterrará o ressentimento a nove palmos (dois a mais por garantia) e concorda em morrer inoculado pelo próprio veneno que teime em escapar. Que assassine os desejos antigos e busque, no dia seguinte da mudança, novíssima forma de ser feliz.
Acontece? Acontece. Acontecem combinações iluminadas, gente de fato evoluída que tem, pela realização alheia, amor mais limpo e mais fresco do que pela própria. Gente que é uma Manu da vida, sem prateleira de mágoas. Convenhamos: raridade. Por ser raridade – e para tornar hipernormal a coisa – é que se deve começar a enrijecer os músculos de amor, é que se deve começar a tratar gordurinhas de mal-entendidos localizados, nas pequenices; antes da renúncia que venha com dieta rigorosa e rotina de atleta. Que nos reeduquemos paulatinamente ao ato de ceder antes de o coração berrar de fome. Antes de o respeito falecer de hipoglicemia.
Não é que não mereçamos deixar de lado algumas esperanças e projetos. Quem não merece já principiar com a conta no vermelho é a felicidade dele. Tristes de nós se, irrealizados, servirmos só para âncora que impeça a navegação.
Não discuto aqui a questão ético-moral de uma mulher tornar-se homem, seus vice-versas e suas implicações. Discuto uma única implicação: o aborto de sonhos a que determinado quesito da felicidade alheia às vezes nos obriga. O que precisa morrer emocionalmente em nós para que haja, em outrem, espaço para um nascer desejado. É punk. Tão punk que, nos corações com bueiro entupido – aqueles que lotam lotam lotam até regurgitar, na primeira oportunidade de chuva, o bando de frustração engolida –, o mais certo é não dar certo. Fez-se a renúncia, fez-se a concessão, fez-se a tentativa de adaptação interna. Mas não se fez a fundação convicta, não houve perdão devidamente acreditado pelo perdoante (porque é trabalho enormíssimo de perdão pôr o outro em liberdade não-condicional de nossas expectativas).
Não acredito lá muito, por exemplo, em renúncia de fora para dentro. Digamos: o marido/ a esposa foi transferido(a) para outra cidade ou país, e o que ganha menos abrirá mão de sua carreira construída e idolatrada para acompanhar o (financeiramente) mais bem-sucedido. Me desculpe, é fria. É fria na medida em que o acompanhante não colocar a mão interior sobre a Bíblia e garantir-se, com pureza d’alma, que nunca, nunquíssima, nunca de núncaras jogará na cara do outro o tanto de desapego que precisou ter para permitir seu desenvolvimento profissional. Nunca com palavras, nunca com gestos, nunca com muxoxos, nunca com sarcasmos, nunca com indiretas, nunca com ironias, nunca com semanas de gelo, nunca com noites no sofá, nunca com perdas gratuitas de paciência, nunca com gritos, nunca com silêncios. Só acredito nesse tipo de arranjo sob voto perpétuo, registrado em cartório espiritual, de que o renunciante enterrará o ressentimento a nove palmos (dois a mais por garantia) e concorda em morrer inoculado pelo próprio veneno que teime em escapar. Que assassine os desejos antigos e busque, no dia seguinte da mudança, novíssima forma de ser feliz.
Acontece? Acontece. Acontecem combinações iluminadas, gente de fato evoluída que tem, pela realização alheia, amor mais limpo e mais fresco do que pela própria. Gente que é uma Manu da vida, sem prateleira de mágoas. Convenhamos: raridade. Por ser raridade – e para tornar hipernormal a coisa – é que se deve começar a enrijecer os músculos de amor, é que se deve começar a tratar gordurinhas de mal-entendidos localizados, nas pequenices; antes da renúncia que venha com dieta rigorosa e rotina de atleta. Que nos reeduquemos paulatinamente ao ato de ceder antes de o coração berrar de fome. Antes de o respeito falecer de hipoglicemia.
Não é que não mereçamos deixar de lado algumas esperanças e projetos. Quem não merece já principiar com a conta no vermelho é a felicidade dele. Tristes de nós se, irrealizados, servirmos só para âncora que impeça a navegação.
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