segunda-feira, 25 de março de 2013

Coisas nossas

Dias atrás vi uma forma de morte: quadros no lixo.

Se eram, se deixavam de ser belos; se eram ou não jovens picassos e monets, magrittes e rembrandts; se mil ou ninguém mataria para tê-los no cofre ou no lugar de honra sobre o piano de cauda – importa pouco. Importa nada. Havia quadros no lixo; quadros em si, nus de assinatura ou de adjunto adnominal. Filhos de arte tosca ou excelente, flores de habilidade ou inexperiência, manifestos ou sussurros, obras-primíssimas ou tentativas: importa nada. Havia quadros no lixo. E subitamente o entorno suspirou, magoado de decepções; o mundo se provou um bocadinho mais pobre e ignorante porque havia quadros no lixo.

Por que não pode haver quadros no lixo? Porque há coisas, simplesmente há coisas e seres envolvidos em metáfora e dogma, por lei imunes ao incêndio, ao mofo, ao esquecimento, ao desprezo, ao rasgo, ao consumado abandono. Há coisas que descem à raiz de nós, nos essencialmente abraçam e pegam aura de sagradas por empréstimo da gente. Assim os quadros – sempre, com ou sem técnica, nascidos de uma visão ou de um rojo. Cada vez que se deitam quadros à lixeira (a não ser que injuriosos), joga-se fora um momento de escolha, um grito pessoal de cor, de opinião, de necessidade mesma. Cada vez que se taca na indiferença uma imagem que alguém elaborou pelas artes que tinha, sobra um mundo menos disponível, menos disposto a encontrar um olhar alma-gêmeo para qualquer versão de beleza. Sobra um tantinho mais de cinismo plástico, que não deixa de secar mais um galhito da árvore gorda de possibilidades.

Também os livros. Que assassino quem dispensa, para todo o sempre, livros! Livros não são entes que desçam à caçamba da Comlurb, livros são amostras d’alma que até fisicamente ganham alma própria, com seu cheiro e sua amorável tinta, e sua-tão-sua textura singular ao tato. Livros são excertos de pessoa, quase humanoides com cara e voz, bebês que não se desperdiçam ao léu sem antes providenciar-se adoção. Livros são tão úmidos de vida quanto o cachorrito que rói a cortina e a velha samambaia que transformou a cabeceira em franquia da Amazônia. São igualmente indispensáveis sem ter futuro assegurado, quente e macio em outra mão, em outro seio. Livros não são bicho de lixo. São filhos eternamente em processo, amores chegantes pela própria natureza.    

Também as bonecas de pano (nem as digo industrializadas, de plástico substituível). Também os DVDs de filme que apenas não nos encontram mais em modo de palpitação. Também as cartas convenientemente idosas e ridículas. Também os álbuns de figurinha que nos moveram meses a fio numa sofreguidão de Copa do Mundo. Também as caixas de lata ou madeira descascante com relíquias do que fomos – não relíquias somente cacarecas, mas daquelas que dão laço escoteiro em alguma esquina do miocárdio, de tão estreitamente coladas àquele período de apaixonamento, àquela esperança, àquele dia. Também a coleção de futebol de botão, de desenhos do filho na creche, de desenhos seus na creche, de redações na escola, de poemas distraídos em aula, de diários com essência de morango socados na gaveta. Metonímias demasiado cheias, demasiado nossas, para de repente irem acabar no limbo do como se nunca. Como se nunca, nelas, alguém houvesse por determinado tempo existido.

Jogar fora é preciso. Mas a vida, a vida, a vida – também só existe reavivada.

3 comentários:

Camila Rodrigues disse...

Lindo texto, me emocionei !
Só adicionaria ao grupo de coisas que não devem habitar o lixo (e isso é algo bem pessoal meu) cadernos! Sou doida em cadernos, tenho muitos, muitos, de várias fases da minha vida e sei que eles já estão se tornando peça de museu... não importa: Os adoro!
Muito obrigada pelo texto lindo e comovente.
Abração da Camila

Tarlei disse...

Belo-belo!
Adorei "o vida reavivada" paralelando o ceciliano "a vida só existe reinventada".
E lembro Caetano na canção "Livros": "Os livros são objetos transcendentes / mas podemos amá-los do amor tátil". E Gabriel Perissé que diz que o livro é um objeto quase-gente.
Lindo-lindo!
Abs,
Tarlei

Tarlei disse...

Reparo no verso de Cecília: "A vida só é possível reinventada". Coisas da falta de memória.
Abs,
Tarlei