terça-feira, 12 de março de 2013

É preciso um bocado de tristeza

É melhor, sim, ser alegre que ser triste, e necessário fugir papa-leguasmente da melancolia que vai se engalfinhando n’alma. Assim eu ontem dizia. Mas tem outra verdade: uma dosezinha que seja de tristeza tem de entrar na massa de tudo, senão não se faz um samba não. Um quê de tristice, pequeno, discreto, hospedado na última esquina dos olhos, vai-nos amaciando feito martelo de carne, torna-nos porosos à presença da beleza no alheio e nos arredores. Que a alegria demasiado estridente reverbera em si mesma e engole o pano de fundo, além de assustar o delicado (o delicado é um cervo assustadiço). A tristeza comedida, não; pisa mansa, vestida de tanto silêncio que não espanta o cenário nem se basta sozinha. Olha respeitosamente para fora, como quem busca quebrar um jejum sem engasgar-se.   

Na ausência de tristeza não cresce poesia. Não cresce a mais inflamada poesia. Poema, se exalta, exalta sempre em detrimento de algo que pesa no coração por contraste; se elogia com ternura, necessariamente o faz de espírito ajoelhado, receoso de que todas aquelas perfeições saiam voando. Em vácuo de tristeza, amor não cresce. Amor é amigo do riso constante e inimigo da gargalhada perpétua; carece dessas seriedades e meias-luzes sem as quais o amado não se vê aconchegado em penas. Amor precisa da saudadinha lisonjeira, da despedida que aumenta a urgência, da contemplação tão mais venerante quanto maior a ciência de que o tempo tem ruins caprichos. Por que se (a)colhe a flor? pela refinada tristeza de sugá-la enquanto, brevissimamente, vive. Por que se fotografa a paisagem? pela aniquilante doçura de um dia revê-la encapsulada e saber que a volta não será como da primeira vez. Por que se abraça a literatura? pela sofisticação sem par de ter outras diferentes tristezas no colo, ser atacado por sofrimentos que não o atingiam, alcançado por inquietações que lhe escapavam, aprimorado por outras possibilidades que lhe vão chorar no ombro. Conhecer, amar, viajar, crescer – eis o fundamental invisível sem tristeza, porque sem tristeza subestima-se a envergadura do depois; sem tristeza leve e sorridente, não se faz o solo permeável a impressões definitivas; sem tristeza humilde e atenta, não se aprende a fragilidade dos saberes provisórios. Não se recolhem nem mimam dias. Não se valorizam, enquanto existem, alianças, rituais, cachoeiras, culturas milenares, o caminho ao altar, o último capítulo da novela, o Mickey, o réveillon, a Mona Lisa.

Sem tristeza (alguma), o ser não se ara. O ser não para.

Um comentário:

Tarlei disse...

Fernanda,
seu texto me fez lembrar esta frase do feiticeiro-mor das palavras: "É preciso sentir até tirar as cascas da alma" (Guimarães Rosa).
Abs,
Tarlei