sábado, 16 de março de 2013

Your song

Aprendo com Marina Colasanti, em sua (como todas) preciosa crônica “Para dizer quem sou, me cantarão”, que “em alguma remota região da África [... ou do Oriente], quando uma criança nasce, os adultos e os sábios da aldeia se reúnem e começam a entoar melopeias e canções numa espécie de transe [...], até achar aquela que será a música pessoal e exclusiva do recém-nascido. Burocraticamente, diríamos que para o novo cidadão aquela música passa a ser uma espécie de carteira musical de identidade. Mas é muito mais, é uma impressão digital auditiva, é um reconhecimento interior, é a identidade em si. A partir dali, a comunidade canta aquela música à criança em todas as ocasiões importantes da sua vida – os aniversários, os ritos de iniciação, as grandes perdas”.

É belo costume e quase mágico, mas me traria problemas. Coloquemos assim: se eu me vertesse em um dos X-Men, fatalmente me tornaria a Vampira, por identificação. A guria absorve tudo que toca; me too – salvas as proporções. Em consequência, simplesmente não sou gente de ficar atada a uma canção eterna, porque, se escuto umazinha ligada a certa época, me transporto para a época inevitavelmente, com todos os seus cheiros e gostos e o inconveniente pior: sentires. E aí o resultado sairia de través, uma vez que a melodia-assinatura, longe de me emprestar eixo, me baratinaria. Não sou gente de música; sou gente de músicas. Gente que não pode ter as mesmas referências de adolescência e infância a tamanho alcance, sob pena de (num contato mais continuado) ficar lá presa, masmorrada na Caverna do Dragão temporal. Haja terapeuta para reencaixar sentimentos em suas devidas eras, depois de cada rito de passagem.

Inda que eu não seja forçada a recuperar raízes mês sim, mês não, com os sábios da aldeia fazendo lalalalá de coisas velhas no ouvido, a corda é bamba. O equilíbrio é tenso. Ando sempre desencapada, despreparada; ver-me invadida pela trilha sonora da novela anterior já solta um ou dois fios mui a custo esticados, já me faz misturar as estações afetivas. De repente sou duas, sou três. Sou a de agora e subitamente a da lua de mel, da oitava série, do primário. Toca “Sereia” e sou a de quinze anos, no hall de entrada do cinema, discutindo Cavaleiros do Zodíaco com a irmã. Vem “Innocence” (aquela chicletosa da Deborah Blando) e fico fazendo trabalho de grupo na casa de algum colega de sexta série, devidamente reinformada sobre os quem-gosta-de-quem que agitam a turma. Chega uma qualquer balada do Elvis da trilha de Lilo & Stitch e piso nas delícias agoniadíssimas de início de namoro. Assobiam os acordes de “Somewhere in time” e upa! retornam os iguais doze anos da sexta série, rodando na vitrolinha as paixonites malogradas. Escorre a voz de Marisa em “Depois” e sem querer tropeço nos alguns meses antes, quando tínhamos e acompanhávamos novela das nove. Aparece Moraes Moreira com seus pirlimpimpins e caio nos domingos do endereço mais antigo, jornal aberto no chão, pais em casa, brinquedo da Estrela, quintal convidando e tudo era uma vez.       

Saudades nenhumas. Nem aversões. Mas acabo precisando evitar umas canções que se entranharam em cada época (nem por isso favoritas) se quero manter a mínima paz de espírito de não ser tragada para o portal. Preciso ficar com as moderníssimas e as neutras – as que passaram pelas décadas sem marcá-las a ferro. Cansa. Cansa driblar aqui e ali os ataques de um mundo sem silêncios. Necessários reforços: minha atual equilibradora de pensamento (ou “música de higiene”, como já apelidei em outro post) é a “Sei” de Nando Reis, tão bonitinhamente ligada ao clima de Lado a lado, que me recuso a deixar terminar. Pra fazer durar, me meti na bolha espectadora: se não assisto a nenhuma, se outra novela nenhuma entra, Lado a lado não sai. Prontito. E depois dizem que a gente não sabe como voltar ou parar o tempo.

Eu sei.

Um comentário:

Anônimo disse...

Adoreeeeei, Fernanda!!!

Beijo,
www.estanteseletiva.com