domingo, 27 de fevereiro de 2022

Narrativas


Narrativas (talvez a palavra mais conspurcada dos últimos anos) servem também para isto: para se prestar a tratamento dos que, como eu, não sabem lidar internamente com o término de coisas boas. E nem falo de coisas boas necessariamente imensas, tipo vidas ou fases; pequenices contam da mesma forma em sua peso-plúmica proporção – músicas favoritas que acabaram de tocar, um sabor particularmente luminoso que se esvaiu com a última fatia, uma novela em que tudo era familiar e redondo mas que precisou, por fado das novelas, ter um capítulo final. Não que não me saiba conformar, bem ao-contrariomente; me conformo com velocidade alarmante e que beira a frieza externa, já que pareço levar embutido esse dispositivo que vai fazendo o shake permanente da insaciabilidade com a indiferença e impedindo, assim, que o coração seja tragado por uma ou por outra. Narrativas.

O fim de uma série ou novela querida é bom porque sabemos finalmente o que ardíamos por saber, e porque paramos de sofrer por aquelas viditas que agora seguirão resolvidas e sãs, e porque teremos de novo mais tempo para outrices, e porque novas histórias virão que nos apaixonarão com querência de outro feitio. Um computador enfartou, mas sua memória ficará literalmente preservada em diferentes manifestações. Acabamos uma refeição magnífica num restaurante que ca-ram-ba, porém há TANTOS restaurantes carâmbicos ainda por conhecer. A música que tocou agorinha eu posso, se quiser, ouvir no celular outras 8.982 vezes seguidas. As férias que (ai!) passam tão ligeiras loguinhamente chegam de novo, fins de semana e feriadões estão sempre aí anyway, você piscou e já é Natal. O amado tempo de Natal escorre depressa, e está tudo bem: mais um ano inteiro para garimpar enfeites novinhos aos poucos. E esse ano inteiro que VOA? problema algum; quanto mais passam mais se aprochega a aposentadoria, nirvana de todos os assalariados sob o sol.

Lógico, não significa que não haja dores simplesmente inapalavráveis, nas quais a narrativa continua acontecendo para dentro mas apenas para dentro; qualquer mínima tentativa de verbalização as inflama. Porque não creio seja necessário dizer tudo, creio somente ser necessário dizer-se em todo idioma reconhecível por nosso pedaço consciente. Acredito no mecanismo fundamental: para o centro de comando não pode haver automentiras, todo canto da casinha mental deve ser muito entrável e limpo, e mesmo no quartinho da bagunça o chão há de estar visível, pisável, povoado só do que escolhemos botar nele e não de baratas ou ratos vindos de fonte ignorada. Não é crucial ser asséptico (nunca serei asséptica), ser funcional é que é preciso; tudo se desenrola fino quando existem mapeamentos e negociações de todas as dores.

Só para fins de navegabilidade pública podemos ser (como o poeta) bocadamente fingidores.

Nenhum comentário: