quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Mulher com espelho

O pintor expressionista dinamarquês Carl Holsøe era basicamente um homem caseiro. I mean: não faço ideia de como era o cidadão em sua intimidade civil, porém artisticamente se mostrou sempre caseiríssimo, preferindo eternos retratos de interiores – móveis, janelas, bibelôs, cantinhos com instrumentos musicais – às vezes povoados de mulheres longínquas, recorrentemente flagradas de olhos baixos, de perfil ou de costas. Há uma serenidade de residência silenciosa em seus quadros, um clima de passeio gentil por cômodos iluminados com doçura, nos quais deslizamos pontinhando os pés a fim de não perturbar as mulheres que leem, maternam, refletem, tocam piano, como em cenas incidentais dum filme de época.

Veem o que digo na tela acima (Woman in an interior with a mirror, de 1898)? Não consegui não levar a fisgada logo que dei de olhos na perfeição de suas linhas muito suaves, limpas, generosas. É irresistível nos sugarmos para a cena íntima, empatizarmos com cada pedacinho de linguagem corporal da jovem que se prepara para sair e se testa diante do espelho. Sabemos que é a penúltima olhada, não a última; não é a última porque o chapéu pende ainda dos deditos que mal o tocam para não marcá-lo – e qual senhora ou senhorita sairia sem checá-lo milimetricamente nos cabelos, muito já assentadinho e resolvidinho sobre os fios? Sabemos também que a moça, embora vaidosa a ponto de se estar contemplando antes do arremate, e embora languidamente sensual de se admirar com o xale semiescorregado (e permitir a mechinha escapante na nuca), dá vazão a preferências discretas; é sintomático que o chapéu escolhido tenha a cor exata de seus cabelos e possivelmente se mescle inteiro a eles, tanto quanto o traje não pareça contar com nenhum adorno. Será uma qualqueridade, aliás, que o chapéu case mui perfeitamente com o móvel – e a roupa, com todo o restante ambiente que abraça a musa silenciosa? Será uma qualqueridade que o invisível de seus pés, imersos na sombra do vestido e no mar do piso escuro, dê à jovem protagonista o efeito de flutuância?

Não me parece uma mulher propriamente triste, parece-me uma mulher que leva a tiracolo certa resignação distraída de seu potencial feminil, certa moleza na vontade estética, um conformismo de gente séria que é simplesmente séria e se concede só uns pouquinhos escapes de xale. Mas ama o próprio colo, a moça, ah, lá isso ama; note-se que é sobre ele seu foco reflexivo, e que não à toa o xale permanece arriado, e que o chapéu provavelmente sombreante ainda não foi posto. Por que motivo, senão um enamoramento da parte superior do corpo, uma mulher que se arruma para sair se demora diante dum espelho que nem a reflete inteira (e por sinal é feito e posicionado para olhar de cima os moradores da casa)? Sim, essa jovem se ama com amor discreto, incompleto, como ela mesma é discreta e presumivelmente incompleta, ainda que não o saiba ou admita; quase posso ver-lhe o sorriso descampado durante a visita que fará, o sorriso protocolar de quem se avoou para outras terras ou não chegou a pousar nestas, vaga, flutuante.

Sorriso de mulher que apenas pressente merecer uma tirada de chapéu.

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