Da série “propagandas do Boticário”. Tem-me chamado a atenção um comercial especialmente lírico em que a protagonista, ainda adolescente, deixa uma carta “para eu mesma no futuro”. Pergunta à futura eu como as duas andam de vida, se estão felizes, se mantêm os velhos gostos, e em dado momento se questiona: “Chegamos lá? e se chegamos: lá continua lá?”.
Nunca vi melhor e mais leve resumo de nossa imponderabilidade. Duas interrogações que engoliram vinte tratados de filosofia. Nascemos, crescemos, adultescemos doutrinados pela ideia de não abrir mão dos sonhos. Nunca. Por Fantásticos e Globos repórteres, somos encharcados de exemplos edificantes: a primeira palavra do sujeito foi “Tchaikovsky”, a primeira sapatilha da menina foi de ponta, ele só dormia ao som da sirene de brinquedo, ela só brincava com o estetoscópio de plástico. Pessoas que, desde os 2,5 anos, peitaram fome/ miséria/ falta de estudos/ excesso de estudos/ nariz torcido do pai/ abandono da mãe e sei-mais-o-quê para se tornarem violinistas/ bailarinas/ policiais/ cirurgiões/ veterinários/ mergulhadores. Pessoas que sempre souberam. Sempre. Que nunca desistiram. Nunca, nunca, nunca.
Pessoas que nos matam de culpa, sufocam-nos com seus precedentes. Como é que nós, desenhistas natos, ousamos nos apaixonar pela faculdade de Estatística sem autorização da família? Com que direito encostamos a raquete e nos casamos com o oboé? Com licença de quem decidimos que somos mais o fotógrafo de agora do que o mágico que mamãe exibia às visitas? Muita audácia nossa, esse tal de amadurecer. Que falta de consideração não sermos ad infinitum o retrato que nos explicava, o rótulo que nos encaixotava, o sonho que nos tornava definíveis. Mal-agradecidos que somos de varrer tanta expectativa pro tapete e tomar posse de nós. Traidores que somos de mudar nosso lá (doce lá) no meio do caminho, de trocar nossos maiores desejos da vida quando ninguém estava olhando.
Acontece. Acontece-nos. Os anos têm isso de curioso: vão trazendo mais coisa do que os anteriores. Com fúria ou gentileza, vão nos descascando de algumas camadas, pincelando outras. Nós e o coração trocamos de epiderme, de penugem, de floração. Diminuímo-nos. Acrescentamo-nos. E nem sempre nos chega a correspondência com o alvará de soltura dos sonhos antigos, nem sempre nos avisam de abrir espaço no armário para os recentes. Na pressa, no despreparo, nos invadimos; hospedamo-nos de surpresa em nós.
Pelo sim, pelo não, é bom deixar um jogo de toalhas no banheiro. Pro caso de algum futuro lá vir dormir aqui.
8 comentários:
Muito legal.Acho que não vi essa propaganda ainda. Mas achei bem interessante essa sua abordagem. As vezes pensamos mesmo 'Como será q estarei daqui a uns anos'. kkkkk
Show essa postage, muito boa!
http://vivaiona.blogspot.com/
Lindo post! Lindo mesmo!
E realmente acredito que o "lá" pode mudar de lugar, de pessoa, de coração, quantas vezes nos permitir. No fundo, nossos planos são tentativas de felicidade e se eles mudam no meio do caminho é pq as setas, sinais, sexto sentido, ou seja lá o que for, nos dão novos mapas, novos sentidos.
a gente nunca "é", a gente sempre "está". lembrei-me de uma frase do guimaraes rosa que é mais ou menos assim: "o mais importante e bonito do mundo é que as pessoas ainda não foram terminadas"... adorei a postagem, vc usou ótimas imagens e metáforas pra explicar essa nossa transitoriedade, tudo de maneira muito leve e serena. quero ler mais vc, vou acompanhar. abraço
Belo post, mesmo. A gente sempre muda na nossa vida, não conseguimos ser convencionais, mas "radicais". Nunca estamos satisfeitos, e não somos felizes se seguirmos clichês e o que os outros querem. Parabéns pelo post, vou ler mais este blog. Abraço!
Adorei o seu blog, como escreve lindamente!
Estamos sempre em constante mudança, essa é a realidade!
http://mmmorango.blogspot.com
muito bom ;D
Tem gente q cresce e vira lobisóme.
vivemos constantes mudanças, pois fazemos constates escolhas não é?
p.s já escrevi uma carta pra mim mesma do futuro kkk ainda ñ abri
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