sexta-feira, 22 de julho de 2011

Vasto mundo

Você é uma formiga. Vamos, faça comigo o exercício de imaginação: você é uma formiga. Há um gafanhoto no seu formigueiro. Pelo menos há boatos, há indícios, há suspeitas, há testemunhas, há uma agitação fora do comum entre as formigas, embora ninguém consiga apontar uma única perninha verde passeando pela aldeia. Há, porém, um gafanhoto no seu formigueiro – é o que se sabe. É o que se sabe. Sabem, indeterminadamente. Como não houve meio de determinadamente apontar o gafanhoto, invente-se. Você (que, não se esqueça: é uma formiga) não deixou de ser formiga, mas, olhando de certo ângulo, até que não daria um gafanhoto de todo mau. Tem a antena levemente mais longa, tem o olhar de soslaio dos gafanhotos. Pronto, você é o gafanhoto. Antes que abra a boca para gritar (ou seja lá o que fazem os gafanhotos) que é uma formiga, será esquartejado pela tribo. Quem teve a audácia de dizer que você é uma formiga?...

Hoje faz seis anos que Jean Charles de Menezes, gafanhoto eleito à revelia, foi trucidado sem o benefício do tempo – o tempo necessário para apresentar o crachá do formigueiro. 10, 15 segundos a mais que resultariam 10, 15 tiros a menos. Tempo oco, surdo, obtuso, estúpido de disparos e disparates. Por coincidência das que parecem escritas para humilhar assassinos, Jean Charles era eletricista. Seu trabalho era corrente, força, energia, luz. Nem que uma criatura quisesse poderia contornar o clichê, dar as costas à metáfora. Jean, iluminador literal, morreu de escuridão figurada. Não simples e tranquilamente morreu: foi morto de escuridão figurada. Morreu na mais bárbara, na mais paleolítica das vozes passivas. Morreu na ausência mesmo dessa voz.

E que nos importa? não era nosso primo, filho, namorado, amigo, vizinho, irmão. Que não fosse gafanhoto: era-nos formiga anônima. Ele sozinho não dava um Vietnã, uma tragédia de Realengo, um Holocausto, uma Praça da Paz Celestial.

Pergunte a seus primos, pais, namorada, vizinhos, amigos, irmãos se não dava.

A despeito da pieguice, uma cena do fantástico A lista de Schindler resume a questão. Quando, no final, o secretário do protagonista lhe entrega um anel de ouro em agradecimento pelo bem feito aos judeus. No anel, a inscrição: “Quem salva uma vida, salva um mundo inteiro”. Pois é absolutamente correto o vice-versa: quem destrói uma vida, destrói um mundo inteiro.

Para alguém ou alguéns do formigueiro, matar-nos é massacrar a Praça da Paz Celestial, repetir Hiroshima, reeditar o Vietnã. Para alguns não somos anonimato; somos apelido de infância, anedota de faculdade, álbum de formatura, pipoca dividida, ultrassom dividido, bochechas apertadas, almoço na cama, amor na cozinha, bronca pela bagunça, beijo pela lembrança. Somos um universo com pernas. Um planeta com RG. Um compêndio ambulante de História Geral. Para alguém ou alguéns somos tudo – ou parte do pouco – que realmente interessa.

Quem teve a audácia de dizer que você é uma formiga?...

7 comentários:

Dona Ana disse...

Infelizmente na maioria das vezes somos pré-julgados. E quem lá queria saber se ele era um "gafanhoto"?! Precisavam de um sujeito, não precisavam?! Ele era um pouco diferente da maioria, não era?! Nosso século está uma porcaria. Adoro seus textos, beijos Fe.

Morel disse...

parabesn pelo o blogs, ficou show



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Eliseu Antonio Gomes disse...

Fernanda.

Boa reflexão,, muito bem escrita. Parabéns!

As informações mais recentes, nos faz saber que a residência desse brasileiro estava com monitoramento de escuta telefônica ilegal, instalada pelo jornal News of The World. Em suma: a Scotland Yard tinha policiais corruptos vazando informações da investigação.

Abraço.

Vanessa disse...

ah é fato somos jugados a todo o instante e tb jugamos sem para.

Unknown disse...

Só para mostrar como algumas posturas não deveriam ser repetidas.. há tanto e somos tão ínfimos... Um verdadeiro exercício de conscientização!

;D

Jefferson Reis disse...

Quando você disse que eu era um gafanhoto, levei um susto, porque eu estava no meio de todas aquelas formigas. Pude sentir o preço de ser diferente no meio de tantos iguais.

Lara Paiva disse...

Somos julgados toda hora. Se você fizer algo diferente (principalmente se for ruim), todos vão notar. Ninguém quer saber de suas qualidades e sim, do seu defeito. Obrigada por passar no meu blog, volte mais vezes