terça-feira, 5 de junho de 2012

Como dizer

Há algumas semanas, em Cheias de charme, o malandrão Sandro (Marcos Palmeira) tentava modificar sua preguiça e sem-noçãozice crônicas, para reconquistar as boas graças da esposa Penha (Taís Araújo). Trabalhou bonitamente e chegou, orgulhoso, com o primeiro salário, garantindo que iria ajudar mais na criação do filho. A mulher aproveitou para sugerir que levasse o menino às compras: não tinha mais uma peça decente no armário, o pequeno. Sandro saiu com o guri a tiracolo e dali a pouco voltou... naufragando em bolsas de shopping? nada: buzinando na maior felicidade um carango velho, caindo quase aos pedaços, mas descrito pelo sorriso do malandro como um negócio da China. Mais uma vez cedeu aos próprios deslumbramentos de criança grande, mais uma vez faltou às necessidades basiquíssimas do moleque, flutuando entre a excentricidade e o rematado egoísmo. Duro era a mãe transmitir ao garoto, coitada, que não contasse nunca com o sujeito para as precisões imediatas, nem se permitisse encantar por aquele universo de descompromissos. Pobres das almas viúvas que têm de explicar aos filhos algum nível de orfandade em vida.

Era o que eu vinha considerando após o episódio. E olha que Sandro, em suas confusões, não deixou por um só momento de afogar o menino em ternuras ou de ser incapaz de uma crueldade direta e consciente. Esses até, delirantes, acabam virando ídolos de seus herdeiros, que só precisam ser demovidos pelos outros familiares de uma admiração excessiva (veja-se o pai viajandão de Leonardo DiCaprio em Prenda-me se for capaz). Pior mesmo, e potencialmente fatal para um coração que valha o nome, é falar a uma criança sobre pai ou mãe carimbados com um tabu emocional. Como fazer uma criaturinha erguer-se todo dia da cama, escovar os dentes, estudar climas e datas e fórmulas e vegetações sabendo ter sido gerada por um estuprador, uma assassina, um pedófilo, um skinhead, uma corrupta que desviou verba de 180 mil merendas e hospitais? Como – senão com a amorosíssima psicologia de A vida é bela, com a criatividade sobrenatural dos protetores, com o transbordamento infinito dos que querem bem – como arrancar da convicção de um serzito o que lhe dizem os bullies, como roubar-lhe da memória o que garantem os autos, como salvar-lhe a autoestima e separar-lhe o espelho dos trotes que o passado entrega em domicílio? De que miraculosa maneira dizer, enfim, aquilo a que ninguém consegue sobreviver impune: você não é fruto de circunstâncias que lhe permitissem ser integralmente amado?

Meu palpite único: integralmente amando. A fim de criar pessoa inteira, quem ficou como ponte sobre o eterno vácuo deve apaixonar-se o bastante para transcender em família inteira.

E sobrar.

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