domingo, 10 de junho de 2012

Elogio do nada

Leram a coluna da Martha nO Globo de hoje? Um espetáculo falando do outro. No caso, “o outro” é a peça lindamente feita por Drica Moraes e Mariana Lima, A primeira vista, em cujo texto se destaca a saborosa ambiguidade da expressão “nada é suficiente”. Ambiguidade porque tanto se pode ler o trecho puxando o sentido para “nunca estamos satisfeitos” como para “o nada já nos basta” – e é este significado, segundamente dito, que a cronista prioriza.     

Confesso não tê-lo pescado logo de cara, tão focados estamos em reclamar de nossas reclamações mesmas. Virou cult, virou quase dogma dizer que sofremos de incompletude crônica, que mergulhamos em tresloucada fome capitalista, que o bem hoje adquirido já será obsoleto... ahn, hoje. Tudo verdade. Somos de fato esses monstros de consumo generalizado (antes a coisa se resumisse a inanimados: descartamos gente também), e o próprio motivo de eu ter estranhado o segundo sentido da frase me fez preferi-lo. “Nada é suficiente”: estar contente, estar plenamente saciado com o nada, olha a diliça! Não carecer de etiqueta para nos avisar se gostamos ou não da roupa, não dar a mínima para os últimos lançamentos de iCoisinhas, não ter a menor necessidade de esporte radical para botar tempero nos dias, não sentir qualquer buraquinho choroso que fique amofinando o outro para nos dar intermináveis provas de amor. Escalafobéticas provas de amor. Para quê? todo mundo vai muito bem com a maravilha que já possui, obrigada. Acréscimos são bem-vindos, recepcionados com flores, mas não mandatórios. Sem eles nos viramos fantasticamente. Paradise.    

Falei em provas rinocerônticas de amor não foi à toa. Nesta antevéspera do Dia dos Namorados, é no que penso com simpatia: nos milhares de coitados (principalmente eles, os homens) que receberam das namoradas um indiferente e terrível “não quero nada, amor!” – e sabem, ai deles, que se não voltarem da caça com o mais perfeito, o mais absoluto, o mais santo-graálico dos presentes, terão instabilidades sujeitas a trovoadas no decorrer do (laaaaargo) período. Assumamos, gatas: mulheres estão tão próximas ao significado número 2 da frase como o planeta está prestes a gozar de paz mundial. Mulheres ainda guardam resquícios da criatura que permanece nas cavernas à espera do maior pedaço de brontossauro (licença histórica, licença histórica), trazido pelo guerreiro de maior cotação na praça. A diferença é que saiu de cena o brontossauro denotativo para entrar o figurado; não se garante necessariamente o almoço com o mimo do parceiro, mas se afaga a certeza de ser idolatrada-salve-salve em meio à raça esfaimada de predadoras. Se não andamos tão carecidas de quem nos providencie sustento, em compensação trouxemos o fardo e o jogo para o nível do abstrato, do adivinhado, do emocional, onde eles patinham e nós nos havemos como craques. Nas relações atuais – quando relações de fato –, temos mando de campo. Jogamos em casa. Ainda assim, tripudiamos: mô, não quero escolher o presente não, quero deixar a cargo de sua criatividade e romantismo. E lá vai a pobre criatura, cabra-cega em terreno minado, tateando o imponderável e tentando alfabetizar-se no indefinível. Tom Cruise pendurado a um milímetro do chão, respirando baixo para não ativar nosso complexo sistema de alarmes. Decepção com o número errado do sutiã? Desgosto porque ele não teve sensibilidade para lembrar o nome da loja que você mencionou largamente – um segundo antes do pênalti decisivo da final de campeonato? Cortem-lhe a cabeça! e a seguir um pulinho na chocolateria, por motivos de rehab.

Não digo que tenhamos de nos contentar literalmente com nadas, que precisemos nos agarrar ao primeiro que não nos espanque e levantar as mãos pro céu se pelo menos o ogro acertar nosso nome todos os dias. Mas, igualmente, não convém nivelar por nosso glossário o nada e o tudo alheios. Às vezes o sujeito cravou um dez no presente justo porque foi no mais caro/seguro, sem coisa alguma de vontade e com alguma coisa no bolso. Se não mandou a secretária buscar. Às vezes errou com distância abissal por pertencer a uma linhagem de 37 daltônicos, porém gastou quatro horários de almoço na semana para pesquisar the lembrança sonhada. Merece o quê? no mínimo a consideração de ter seu esforço malogrado promovido a tudo. Aquele “obrigada” de quem reconhece, dentro dos atabalhoados entretantos, o som purificante dos fins.

O nada nos basta. Quando é fielmente repleto de nós.

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