sábado, 16 de junho de 2012

O número um

Sabe a crônica de Paulo Mendes Campos da qual falei ontem? De tal forma riquíssima, a tal ponto milionária de sentidos é, que aí permaneço. Há outro pedacinho adorável, espetacularmente: “Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namorados, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes, por caminhos tão escondidos [...]. Para o bolso: se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde queres, ganhaste”.

Céus! que ando precisada demais que a humanidade ande precisada de Paulo. Que o mundo se chegue a ele e espontaneamente beba, e epifanicamente absorva essa verdade simples, solucionante, extraordinária: bem nada nos importa onde cada um cruza sua linha de chegada. Onde cada qual situa seu pódio. Onde cada um armazena seu troféu. Não nos importa bem coisíssima nenhuma quais medalhas o vizinho já poliu no escritório, quais campeonatos o primo conquistou de xadrez ou matemática, quais certidões internacionais de excelência pianística a melhor amiga emoldurou sobre a cama. Uns sinceros parabéns, umas felizes admirações e basta. Não nos compete competir em seara alheia. Não nos faz jus o ato de medir o universo – tão infinito de hipóteses, tão largo de caminhos, tão derramado de possibilidades – pelo específico número de vitórias de pessoa específica, em campo único. Não nos honra a ganância de pretender todos os dotes, de sonhar todos os talentos, não pelo desejo apaixonado da coisa, mas pela mesquinhez de ficar o máximo de tempo espiando o mais de cima possível. Celebrando sozinho.

Vez por todas durmamos com um silêncio desses: há mundo bastante para que o sucesso do outro não nos roube. Para que o aprendizado do outro não nos espolie. A primeirice de seu colega de trabalho em visitar os mais remotos cantinhos de Paris não põe no bolso nem leva para casa os mais remotos cantinhos de Paris, que lá prosseguirão linda e frescamente, abrindo os braços excitados à sua própria visita – e provavelmente acrescidos em novidades quando você os for visitar. Uma sua conhecida conseguiu eliminar os mesmos 20 quilos que lhe sobram? ótimo; adiantaria mais a você que ela permanecesse gorda e, portanto, a reta final do regime soasse mais impossível? Ah, o seu amigo de infância passou na peneira para bailarino do Municipal, ou foi aprovadíssimo para o mestrado de Economia em Harvard. Fenomenal. E no que você – você que sempre teve três pés esquerdos até pra dancinha de boate, você que sempre foi das letras e de cabeça não fazia nem 2 + 2, você que sempre sonhou de verdade em um dia ser Nobel de Literatura – no que você é exatamente afetado por isso, só para registro nos autos?...   

Palhaçada, essa disputa infinda. Como se não fôssemos vocacionados distintos que correm em raias diferentes, particulares, nossazinhas, sem obstáculos outros que não os individualmente circunstanciais ou internos, e sem chance de a bola do boliche alheio impedir nossos strikes intransferíveis.

Felizes de nós (, só), se um dia vencermos a corrida com a gente mesmo.

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