domingo, 24 de junho de 2012

Fora da caixa

Tenho uma teoria a respeito da minha incapacidade de permanecer organizada: sou avessa à impossibilidade de surpresinhas. Tudo bem, concordo irrestritamente com o fato de que o estilo cada-coisa-em-seu-lugar agiliza a rotina, mantém a limpeza, poupa um milhão de aborrecimentos com a fuga de objetos de última hora, bota saúde geral no dia a dia. Ninguém contesta. Mas eu meramente não suporto a ideia de 24 horas tomadas de ordem e método, 100% de assepsia e eficiência no arquivamento. Na plena assepsia – disse e repito – não há chance de surpresinhas; a totalidade das coisas existentes é transparente, é visível, exibe-se sem charme e pudor de minitesouros ocultos, entrega-se inteira, séria, prática. Enxerga-se tanto, dentro da arrumação integral, que não resta espaço à alegria das descobertas, ao contentamento dos reencontros. Urge perdermos uma bobagenzinha ou outra – com moderação – para que haja a delícia de, um dia, chamar novamente aos olhos essas riquezas inusitadas, como testemunhas de um muito particular estado de espírito.

As bolsas. Detesto ficar trocando de bolsa, pela quantidade pornográfica de itens a serem remanejados, e assim acabo fatalmente deixando uns resíduos de base em quase todas as já usadas. Donde se entende que, por exemplo, eu tenha topado outro dia com uma ótima nota de vinte metida numa bolsinha de festa e há muito esquecida. Quem duvida de que se trata de uma das sete maravilhas emocionais da humanidade, o achar dinheiro esquecido? Dez reais ou mais: ganha-se o dia – e o direito moral de almoçar fora ou ir de táxi desta vez. Por decisão de convenção internacional, tudo o que se pilha perdido nas próprias coisas, sem que tenhamos dado por falta, entra de imediato na categoria dos supérfluos destinados à felicidade; à simples e líquida felicidade nua de impostos.

Quase tão bom, ou melhor, é deparar-se com um si-mesmo fugido de qualquer passado e dando sopa por aí. Não têm esse gosto supremo, as criaturas adeptas de caixas e gavetas onde tudo se sabe, tudo se vê: encontrar um bilhete esturricado pelos anos, uma carta infantil que recebemos por causa do clubinho de correspondência publicado no gibi da Mônica, um lacito de cabelo que usávamos aos dez, uma foto do namorado quando havia mais esperança que namoro, uma declaração de próprio punho sobre a paixonite de pré-adolescência, uma escala de estudos feita pela letrinha cuidante de Mãe, um fósforo de estimação com roupa e tudo (don’t ask) guardado num pote de filme fotográfico. Não têm esse gozo de achar velhos e súbitos amigos, totalmente desensaiadas (não raro completamente enterradas) lembranças, as pessoas que nasceram com a louvável propensão de fugir ao caos. Vivem vida mais limpa de desassossegos, são mais ligeiras no acesso às utilidades, desesperam-se pouco ou nada de não achar o necessário; mas não se alumbram de achar o desnecessário. Não se assustam às 2h37 da madrugada com um eu que não sabiam já existido. Não fazem criação particular do imprevisível, não flertam com as idas e vindas da memória. Não trabalham com a oportunidade de serem atropelados pela fartura do tempo decorrido.

Juro: organização eu bem que tento, em nome da praticidade física; mas só sei prosseguir deixando-me migalhinhas de pão na estrada, para deleites futuros. Felicidade é manter a postos os bauzitos fechados – sempre em véspera de nos escancarar as portas. 

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