domingo, 19 de fevereiro de 2017

Não ser obrigada

Sempre curti programas ao estilo Esquadrão da moda, desses que pegam um ser humano desmazelado e sem noção – que anda no mercado de pijama, só usa modelito de dominatrix, coleciona peças de número dezessete vezes maior ou menor, vai com camiseta do Bob Esponja aos casamentos de família –, repaginam, repenteiam, remaquiam e voilà! transformam em capa da Vogue ou boniteza parecida. Gosto dessas bobagens por justamente gostar de bonitezas: cores, modas, estampas, potenciais finalmente explorados. Os ex-desastres fashion germinam, melhoram a autoestima, arrumam crush, ganham promoção no emprego, param de matar os filhos de vexame na porta do colégio, uma coisa maravilhosa. Então, se estão todos bem, que mal tem, right?

Isso penso eu mui candidamente, enquanto me divirto com as figuraças de um Mude meu look, e ainda assim não consigo ignorar um pontinho de interrogação arranhando o forro da consciência. Ver gente se gatificando é show de bola, mas o raio problematizador teima em saber: por que mesmo que gente tem de ser gatificada?... Está provadíssimo que a criatura fica alegre, e é melhor ser alegre que ser triste, e é mais fácil descolar um job quando se põe camisa social e não orelhinhas de Minnie, e é mais provável atrair um partner exibindo acessórios hype e não dentes de vampiro. OK, é mais fácil e mais provável. E é precisamente isso que me atormenta. Ao resistirem de início à intervenção fashionista, as vítimas quicam, gemem: não quero ser modificada pelo sistema, não quero ser profissionalmente avaliada pela aparência, não quero ter alguém que não goste de mim pelo meu caráter e acabou-se. Pouco a pouco os apresentadores persuadem, instigam, aconselham, fazem exercícios de interação que esfregam na cara o quanto as pessoas são julgadas sim à primeira vista, pisam e repisam que para aquele fracasso não tem jeito, o mundo é assim, o melhor para você – para seu salário, sua causa, seus filhos, casamento, projeto, coração – é se encaixar. Aí vai a moça (99,8% das vezes é uma moça) e, fazer o quê, se encaixa. Se encaixa e diz que se encontrou, que aquela foi a melhor experiência de sua vida.

Tá bom que sou chata e nunca neguei, mas me dói. Dói que quase sempre sejam mulheres as examinadas, dissecadas, categorizadas e reformadas, ou seja: que quase sempre sejam mulheres as inadequadas, as rebeldes ao formato de beleza que chamaria os homens, as indiferentes ao modelo corporativo que não assustaria os investidores, as fujonas do molde que confortaria os clientes. Claro, a mulher não tem maior diversão na vida do que pensar em cobrir a raiz aparecendo administrar secador fazer babyliss escolher esmalte suave batom vermelhão não! o colar tem de ser discreto esse faz barulho o brinco não pode balançar passei o corretivo direito? sumiu a espinha? vou colocar broche para diminuir o decote a saia tem de ser no joelho jaqueta acinturada vai me valorizar preciso de band-aid pra encarar o salto alto, antes de fechar negócio – enquanto o homem fecha negócio basicamente tomando um banho, cortando a unha e enfiando um terno.

Homem não se submete a transformações porque amigos o acusam de parecer piranho, homem não tem o grisalho tratado como desleixo, homem não ouve dos parças que fica abatido quando sai sem maquiagem, homem não tem de estar nem aí se está mostrando peito ou coxa, não chamam homem de espandongado se acabou de virar pai e só veste calça jeans e T-shirtão. Não posso portanto, mesmo que me exponha à Palma de Ouro da apoquentação (who the hell cares?), ignorar o desânimo que bate na aorta toda vez que nos vejo como penduricalho do mundo. Não me lembro de ter firmado contrato que me obrigasse à sedução e ao agrado compulsório. Não me lembro de ter assinado compromisso de bibelô ou almofada. Não combinei com ninguém que iria adotar saltos e tintas destinados ao meu corpo, à minha revelia. Não tenho culpa, amados todos, se quiseram decidir nossa estética como quem nos trama um casamento de conveniência, nem lamento quem estrebuchar no chão com crise de abstinência se não vir a rua enfeitada de pingentes femininos. Se não gostarem, gentes, não olhem. Se dependerem de batom e salto para aceitar um acordo de milhões, clientes, se tratem.

Cresçam, fofinhos que ainda precisam de móbiles coloridos no berço. Lá pelos dez anos de idade, já deixa de ter desculpa escolher um livro só pela ilustração. 

Um comentário:

Renata disse...

Eu adorava esses programas. Agora não consigo mais ver...