domingo, 12 de fevereiro de 2017

O que fazer quando se pisa numa concha

Morri de bem-querença ao ler a história publicada há três dias no site The Dodo. Uma clínica veterinária de Tel-Aviv, Israel, recebeu o pacientezinho mais insólito: o infortunado caracol que teve sua concha quebrada quando uma mulher acidentalmente o pisou. O mais maravilhoso é que a ré, em vez de largar à morte a pobre lesminha sem-teto (quantos se comoveriam com uma vida tão gosmenta?), foi bater com ela na tal clínica, em busca de conserto. E os doutores providenciaram fofamente o conserto com afeto e cola, pedacinho a pedacinho, mãos firmes e espertas para não deixar o grude escorrer concha adentro. Sucesso total na cirurgia. O paciente aprovou o resultado da plástica e não parece temer as semanas ou meses de recuperação: instalou-se pimpão em seu spa forrado de alfaces e legumes fresquinhos – com sorriso de antena a antena.

Quero crer que só psicopatas de grau 22 também não sorririam diante da notícia. E no entanto quantas conchas, tantas!, não estraçalhamos inconsideradamente pelo caminho, sem voltarmos com alívio e reparo? Quantas proteções – frágeis mas essenciais – não detonamos em nossa brutalidade sem tempo, sem papo, sem atenção? Quantas defesas não quebramos no mau sentido, baixando escudos sem devolvermos, em troca, alguma ternura de lã? Quantas autoestimas lentas, lentas não rachamos num chute, numa pisada, no peteleco de um comentário que a vítima não digere nem com boldo, mas que para a gente já virou brisa duas esquinas depois?

Não há clínica para reconstrução imediata de conchas emotivas, mas há delicadezas, há perdões, há retornos. Existe o abraço chorado do filho que nunca quis realmente dizer “te odeio”, existe o “me desculpa” público para a alfinetada também pública, o elogio enfático que corrige a crítica desastrada, a alegria espontânea do encontro que substitui um qualquer muxoxo, o remorso legítimo que apaga o sarcasmo momentâneo, a guerra de travesseiros que mata o clima de distância. Não existe médico que desfibrile um pequeno enfarte d’alma, mas há tato, empatia, buquê, chocolate, cafezinho, cartão de papel, cartão virtual, mão na mão, olho no olho, companhia pro estudo, apoio na hora de contar aos pais, presente escrito pelo autor preferido, dedicatória no presente escrito pelo autor preferido, baby-sittice voluntária, quebra-galhice na troca de turno, diálogo com silêncio, luar e vinho. Existe tudo que é cola para a pequena paz, mais ou menos forte, onde mora o outro; e existe tudo que é cola para a segurança interrompida entre o outro e nós. Pode cicatrizar de todo, pode não sumir nunca a sombra da arranhadura interna – mas a cola garante nossa funcionalidade, nossa estrutura possível, nosso mínimo de esqueleto, a não perda do ponto de fuga localizado em nossa solidão portátil.

Da próxima vez que suspeitar ter atropelado uma concha, volte. Socorra. Abrigue. Talvez o coração de sua vítima não tenha para onde ir. 

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