sábado, 18 de fevereiro de 2017

Cabelo fantasma

Uma prima chama assim aquele fiozito solto e fino, muito fino, tão fino a ponto de o sabermos presente em algum lugar sobre o olho, mas não o conseguirmos agarrar: cabelinho fantasma. O danado catuca, irrita e ninguém o vê, ninguém o captura, vamos mil e sete vezes ao espelho e o coiso não se mostra, a amofinação não se materializa, a gente em dois minutos começa a se espancar com grave risco de ser encaminhado ao Pinel. Pois se azucrina desse jeito uma indefinição palpável, feita de moléculas arredias mas sólidas, quanto não enerva aquele catucador fantasma que duplamente não se deixa encontrar – que é fujão e metafórico? Quanto não nos assombra aquele sentir solto e fino, muito fino, tão fino a ponto de nos pinicar n’alma sem deixar paradeiro, sem dar o endereço do que falta, sem marcar com migalhinha o itinerário da dor?

Vou meter uma estatística no achômetro: pelo menos 87% do que aterroriza a humanidade são sentimentos fantasma – o tipo que não tem nome literário nem científico, que escorrega de uma entrelinha para outra, que a gente reconhece exatinhamente nos contos da Clarice mas é que nem estrela: quando se olha muito fixo, se deixa de enxergar. É uma vaga e culpada infelicidade, um desconforto que normalmente se acomoda dentro das chateações conhecidas.

Você, por exemplo, é aquele mulherão estonteante que tem gatinhas adolescentes como filhas, e tudo são amizades e risos e paraísos. Vai ver, porém, a embrulhada que o cérebro empurrou para a masmorra: apesar do orgulho luminoso das meninas, você tem invejinha do corpo delas, você queria de novo suas primeiras vezes, você morre de vaidade de achar fácil algo que elas ainda veem com horror, você se deliciou por um segundo com o olhar guloso que um dos jovens genros lhe atirou, você espera que elas sejam perfeitas mas continua preferindo ser a deusa suprema, você adora os privilégios da adultice mas não se conforma em abrir mão das idades que já lhe pertenceram. E continua sendo uma mãe apaixonada, e uma megera ciumenta, e uma fada ressentida, e uma leoa exclusivista, e uma empresária de miss, e uma madrasta jogadora. Não adianta trancar o calabouço mental, vai ter mais, vai ter sempre mais, vai ter gente ali em você que você não suspeitou nunca, e o único jeito é faxinar com a mais sincera frequência. Limpar, esvaziar, etiquetar com insistência humilde é paliativo; no entanto, evita que andemos sempre em nós às cotoveladas com aranhas invisíveis, às apalpadas no meio de nossas baratas voadoras.

Você ama seu trabalho porque decidiu sobreviver melhor a ele, mas na verdade odeia ter de trabalhar, não por causa dos colegas e sim do fato de acordar tão cedo, embora você renda melhor de manhã e seja louco pelo perfume fresquinho da pós-aurora, por mais que demore um pouco para pegar no tranco e acorde com os olhos desagradavelmente embaçados; só que o tempero do restaurante ao lado do trabalho lhe dá um excelente motivo para viver, e às vezes você tem um sopro de impressão de que só está trampando ali porque, um dia, pretende largar a bodega toda e convidar o dono do restaurante para sócio. Você sente essa loucura inteira enquanto se encolhe de frio no metrô, e não está bem certo se a náusea vem desse ar-condicionado desgraçado ou da lembrança de que não aguenta mais ter de colocar programa para gravar e não ver nada. Não és doido, coração: és mais um Homo sapiens que não sapiens tanto assim como dormir com esse novelo de angústias, essa coleção de alegrias e aflições simultâneas, impegáveis e indistintas. Fingimos ter foco para não sermos despedidos, mas o que somos é isso aí, é essa coisa: pensamos no velho cheiro de maçã verde da infância, em flashes de uma convivência de faculdade, depois sacudimos a cabeça para espantar uma música odienta e, no fundo, o que realmente estamos é apavorados de ver todo um grande conjunto de felicidades ruir de repente, inclusive o insubstituível tempero do restaurante.

Bad news: só na morte vamos perder esse fiapo impreciso que nos aporrinha cada momento. Mas a boa do dia é que esse fiapo é via de mão dupla – podemos do nada ser felizes à toa, e não conseguir evitar.

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