sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Piruás

Vocês sabem: piruá é aquele milhinho teimoso que não explode em pipoca – fica lá no saco ou no panelão, disfarçado no meio dos grãos que cumpriram sua metamorfose (vem no bolo e quebra o nosso dente, o canalha). Não sei explicar por que essa desgraça vegetal acontece; ignoro se existem milhos que simplesmente nasceram gorados, sociopatas, de núcleo duro e ruim, ou se é um fenômeno do momento: apenas calha de aquele grãozinho estar na posição errada, na hora errada, não suficientemente exposto ao calor que o transformaria. Respostas para a redação. O que sei é que, em nosso enorme saco de pipoca humana, não consigo acreditar de verdade que haja elementos destinados à condição de piruá, no matter what. Será possível que a natureza, tão precisa e econômica, iria se dar ao trabalho de passar quase um ano juntando célula para fazer um cérebro incrível-fantástico-divo-extraordinário como o nosso – somente para desperdiçar tanta alma e tanto neurônio com um ser condenado à inutilidade?

Me chame de Pollyanna terminal, mas não me conformo. Não me conformo em admitir que alguém possa sair do útero unicamente para não servir pra nada. Não consigo concordar que exista milho humano estragado de fábrica, imutável, intransformável, inalcançável, fadado pela Moira. Prefiro crer na hipótese do fogo insuficiente, do cerealzinho mal posicionado: gente para quem o amor não chegou direito, gente que não teve a fortuna de cair numa família que lhe aquecesse os talentos, gente que ficou num canto tão escuro da panela que nem pôde pensar em talentos porque precisou ganhar a vida, gente até que recebeu tanta quentura quanto os grãos estourados – mas que, por estrutura própria, careceria de mais quentura ainda.

Estamos falando de pipoca, porém gente, afinal, é mais carne que qualquer outra coisa alimentícia, e cada carne tem seu ponto de cozimento. Há seres cujo potencial brilha mais in natura: por mais que vivam e recebam crueza, têm o coração espontaneamente macio e apetecem mesmo sem tempero (não quero dizer, amizades, que alguns devam ser maltratados para poder divar, é ÓBVIO; constato apenas que alguns conseguem divar no mundo apesar de todos os perrengues, e isso é um relativo consenso). Há espíritos que já atingem pleno gosto e suculência com uma seladinha rápida na frigideira; outros dependem de um mar de cuidados, esforços, tentativas e abraços até que a receita fique masterchef. Não se sabe, não tem padrão, não tem manual. O que se sabe ou imagina: todos podem ser masterchefados. Todos têm sabor insubstituível, único. Todos podem ir à mesa em seu próprio esplendor de erva, legume, fruto, especiaria, proteína. O negócio é que todos achem alguém com ternura, visão, tempo, tolerância, persistência, entendimento, desapego, entrega, respeito, empenho, desvelo bastante para guiá-los à sua inteireza.

Naquele serzinho desperdiçado na cracolândia, a gente talvez nunca saiba que mora um Beethoven com ouvido absoluto. A aluna que mil vezes se repete burra e incapaz talvez nunca tenha pilhado alguém que tivesse um estalo e lhe dissesse: você já tentou assim? A menina que foi vendida pelo pai a se prostituir desde os onze – quem pode jurar que não vive nela a capacidade de uma física nuclear, de uma Jane Austen, de uma Fernanda Montenegro? O senhorzinho que espera a vez, conformado, na fila imensa da aposentadoria – quem põe a mão no fogo se seus quarenta anos de comércio morno não poderiam ter sido quarenta anos de gloriosa vida de circo, de medicina revolucionária, de acompanhamento esportivo lacrador? Os que vemos às vezes com desprezo, não raro com nojo, na maioria dos casos com pena, vejamos – ainda, sempre – com expectativa. Mais que um ponto fraco, o piruá tem sim um ponto forte, pode sim ser tocado em sua tecla power, guarda sim o segredo de um incêndio que o ressuscitaria para si mesmo.

Tudo que eu queria desta vida: de propósito ou até inadvertidamente, ser esse incêndio.

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