sábado, 11 de fevereiro de 2017

O desejo pré-histórico

Segundo tio Freud, “a felicidade é a realização de um desejo pré-histórico da infância. É por isso que a riqueza contribui em tão pequena medida para ela. O dinheiro não é objeto de um desejo infantil”. Bem, tio Freud não disse isso exatamente ontem, mas li com a mesma admiração inédita de uma descoberta de cura, uma ultranovidade tecnológica. Como é que, embora sabendo essa verdade, nunca a tinha visto vestida desses termos? Como é que, com toda a superfície terrestre cantilenando que “dinheiro não traz felicidade”, não se repete também que é porque criança – nosso id eterno – está mais interessada em desenho, abraço e brigadeiro?

Esta é nossa pré-história emocional: querer a maciez de quem nos cuide, nos organize, nos providencie a certeza do fim da dor e da febre; querer morar onde se brinque e se corra, onde se estenda a mão e se acesse o verde e o vivo; querer a luz sem fantasmas, mas querer igualmente o bocadinho de fantasma e mistério que banhe as férias de amor aventureiro. Querer o tempo livre de inseguranças, limpo de obrigações que não sejam o trato de quem se adora – como o estonteante coelhinho de estimação. Querer o belo enfim, o especial, o só-nosso, e uma banana para o preço não existente: nosso clubinho made in sala com lençol e mesa, nosso trenó de tábua, nossa boneca de papel, nossa casa de embalagem de sabonete em que fica divando a boneca de papel. Tudo purissimamente simples, mais essência que objeto, menos matéria que sensação, mais símbolo que posse. A existência anterior ao monólito das etiquetas, à percepção das castas em forma de logotipo. A vida interior a.C. – antes do consumo.

Então crescemos; mesmo nosso resto de infância acaba poluído de marcas e grifes, de um grande implante de necessidades. Cada vez mais logo, mais cedo, parece que deixa de bastar o ar, o parque, o passeio sem rumo, o biscoito lanchado na varanda. Engolimos metas no café da manhã: é preciso manusear seu próprio drone, é fundamental dominar o novo game, é obrigatório bater selfie na loja bombada do shopping, é caso de vida ou morte mastigar 432 McLanches Felizes para completar a coleção. E a felicidade morre no nome dos McLanches. Não fomos planejados para tê-la; quem é feliz compra menos. Fomos educados ano a ano para seguir estafados e histéricos, exaustos e explorados, decepcionados e em desalento; afinal, nosso dever de casa não é (nos) realizar, é adquirir. Nenhum relatório alertava que vez ou outra, por acaso, seríamos gente.

E já que o somos com certa inevitabilidade, a essência volta, chora, fica. Chafurdamos nos paraísos artificiais o quanto nossa resistência aguenta, porém aquele ser que deixa as pantufas ao lado da cama, à meia-noite, entra em si com pés e alma descalços, e se encolhe na pré-história pessoal sobre o útero da madrugada. Ali somos nós, os de berço, os de fábrica: os que continuam querendo a maciez de quem nos cuide – o amigo eterno, o colo do amor certeiro, a gratidão do filho – ; os que continuam querendo agarrar a saúde definitiva; os que continuam querendo sítios, naturezas, viagens, bosques e quintais, querendo a paz onde não se estenda a mão e se acesse o cinza e o fastio; os que continuam querendo sol da manhã na sala e descobertas literárias na poeira do sótão; os que continuam querendo ócios e liberdades, mas também vidinhas adoradas para sufocar de amor. Ali sem pantufas, descalços em nós, ainda somos o mais primitivo que nos pulsa nas artérias – desde o primeiro útero. Já não somos a criança, mas somos nossa fiel linha melódica em outro (nem sempre melhor) arranjo.

Em geral evoluímos, sim, e sou constante em defendê-lo; que evoluamos, no entanto, sem soterrar nem destruir os fósseis que nos explicam. Nós o descobrimos e controlamos na pré-história – mas viramos brasa morta se não alimentamos nosso estonteante fogo de estimação. 

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