segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Saturações

Fiquei encantada ao saber, por um vídeo simpático, que a empresa americana EnChroma desenvolveu óculos que dão aos daltônicos – mais especificamente, aos daltônicos que têm a famosa dificuldade com vermelho e verde – o acesso a um whole new world de bonitezas. Segundo o vídeo, “as lentes usam um filtro que corrige a saturação entre essas cores [as duas de praxe] e lhes permite observar todas as tonalidades”. Até onde me lembro, não convivo com nenhum descromático, mas tomei pessoalmente a coisa: amo cores demais, até a loucura, e tenho peníssima de não estarem lindamente atingíveis a todos. Tudo bem que os óculos não fazem milagre de eficiência, não botam sempre as mesmas tintas em cada par de olhos, não “curam” ninguém; são, porém, uma ajuda fofa e alvissareira (vocês não adoram dizer “alvissareira”?), que amplia largamente as percepções. Bem-vindo seja aquilo que expande o mundo.

O problema, em verdade, é que as lentes mágicas só são vendidas na categoria “olhos de fora”, o que considero intolerável. É maravilhoso se jogar na paisagem e admirar true colors shining through, mas o que fazer com os legítimos deficientes visuais – aqueles que, tendo todos os fotorreceptores para ver, não veem? Que filtro vestir em quem recebeu clarões na escola, mas não decodifica ideias; em quem consumiu vitamina A de Acesso a estudo, internet e leite Ninho, mas não distingue interjeições de argumentos; em quem passou no exame de vista social do Enem, mas é profundamente cegão para as realidades múltiplas? Cadê cirurgia de Q.I. que ajude os desorientados a organizar seus espectros? Cadê transplante de córnea mental que guie os pensamentos extraviados até um eixo de razão humana?

Tem bombado por aí uma ruma de não daltônicos incapazes de ver nuance e de ver clareza. Uma turma que consegue, por exemplo, descortinar no tapete vermelhão do Oscar – um dos maiores prêmios da INDÚSTRIA – o complô ultraesquerdista radicomuna que visa a arrancar o planeta das mãos da branquitude, já que dá os louros (com trocadilho opcional) a um filme de elenco negro. Um povo doido que vê miragens de perseguição quando uma minoria alcança o que ele mesmo sempre teve. Uma gente descompensada dos nervos que percebe discordâncias de pensamento como rejeições pessoais. Umas toupeiras míopes para as feridas dos longínquos e hipervisuais para os próprios arranhões. Uns obtusos vendados para a corrupção que lhes sapateia na cara e clarividentes para especulações a respeito dos desafetos. Uns encataratados diante das necessidades que moram além de seu quintal; uns linces diante dos quereres que estão à distância de um umbigo. Vistas cansadas demais para a lógica e arregaladas para a tolice. Morcegos para o erro próprio, águias para o alheio.

Exaspera e desespera lidar com o daltonismo filosófico, cotidiano e moral – e por isso deixo aqui meu apelo aos cientistas para que se dediquem, amorosamente, à resolução dessas cabeças destunadas. Umas lentes de contato imediato com a vida, uns colírios de desembaçar preconceito, umas gotinhas de dilatar empatia, até um curvex de dobrar arrogância tá supervalendo. O essencial é que o essencial também seja visível aos olhos.

Tudo acerta o alvo se o coração ajusta o foco.

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