domingo, 26 de fevereiro de 2017

Confete e serpentina

Ele é ponto, ela é traço – ou vice-versa. Um é a objetividade refletida, direta, que pousa inteiro onde está, que está inteiro onde fica; o outro é a subjetividade desvairada que tudo abraça e envolve, tudo ao mesmo tempo olha e inclui. Um não tem paciência social, festeja exclusivamente o que é festejável e nunca se estica muito para longe de seu centro. O outro bota uma perna em cada polo do mundo e não há nada em que não se enrosque: é malandro no trato, sedutor no chamado e ambicioso de gente. Um pode andar em bando, mas importa pouco, porque sua individualidade mansa e feroz o faz solitário quase à revelia. O outro pode ser uma criatura que se basta na capacidade, porém não é coisa nenhuma sem que sua amplidão prenda algumas vítimas – várias, de preferência. Um não está apto para a dilatação pessoal; o outro não tem limites reais nem interesse em amarrar as pontas, só mantém o foco em derramar-se.

Conhece um e outro? amigos? casal? Também. Mas eu diria de um jeito mais chutador de baldes: um e outro somos nós.

Somos confete quando a expansão, qualquer expansão, nos cansa: decoramos o estrito para a prova e não absorvemos o global para a vida; pagamos o tributo de amizade sem enfado, mas sem juros; aprendemos as operações do caixa eletrônico para resolver a rotina com o mínimo de interação humana. Somos serpentina quando tudo que não é expansão nos aborrece: baladinha melosa não vai pro fone, o sacrossanto lar começa a parecer abafento, a cócega das viagens e cachoeiras e montanhas-russas e arborismos nos agita o travesseiro. Somos confete quando, embora iguais, pairamos desunidos: temos o mesmo peso e relevância, mas não temos mão para estender, e o vento sopra um a um para o isolamento e a desproteção. Somos serpentina quando estamos tão ávidos de unidade que as individualidades somem no laço, desaparecem no todo esperando que o todo nunca se rasgue. Somos confete quando celebramos amorosa mas pontualmente; somos serpentina quando cruzamos um quarteirão emocional atrás da inclusão de tudo. Somos confete quando festejamos a meta alcançada; somos serpentina quando nos deliciamos no trajeto percorrido. Confete, quando os olhos acarinham a distância do agora. Serpentina, quando o cavalo doido dos sonhos se desamarra e só volta exausto, suado de correr a esmo pelo que nunca foi.

Sim, tudo cabe nas gavetas da mesma pessoa com a diferença, às vezes, de instantes, e nem por isso há casos humanos de combustão espontânea. Sim, existe em nós fartura de espaço para o eu fixo e o eu extenso, a moderação e a sede, a preguiça e o entusiasmo, o assentimento e a sofreguidão. Somos o baile de ingredientes que sambam, somos mais de mil pedaços no salão, somos o pierrô que chora pelo amor da colombina e o saçariqueiro que leva a vida no arame, somos a mulata bossa nova e a maria escandalosa, somos o chá com torrada e o parati, somos o que dá dois suspiros e o que pega touro à unha. Cabemos todos – confete, serpentina, lantejoula, pandeiro, harpa, gravata, chinelo, peruca, purpurina, abajur, lareira, violão – nessa avenida antropofágica de eus que nos atravessa, que nos desfila. Médicos, monstros, bailarinas, canibais: eis-nos. Felizes de nós se é só por fora que envergamos a fantasia.

(E, tendo dito, por ora muitíssimo com licença; vou deixar-te agora, não me leve a mal. Hoje é carnaval.)

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