quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Barulho compulsório

(Ao menos) duas pessoas no mesmo cômodo, não íntimas, não necessariamente relacionadas – mas ou semiconhecidas, ou companheiras fortuitas na situação. Colegas na sala dos professores, pais na porta da escola, pacientes (bota pacientes nisso) enfrentando atraso de duas horas na consulta, taxista e passageiro, aguardante e recepcionista. Que fazer para encarar o tempo e o convívio obrigatório? Neste nosso Brasil, falar. Falar sobre o clima. Falar (clichês de elevador) sobre a política. Falar da (falta de) saúde. Falar o que o porteiro do namorado da prima do ascensorista da Globo revelou sobre aquela atriz que todo mundo acha simpática. Falar vazios, falar desgraças, falar receitas – tagarelar e tagarelar num esforço constrangido de reconhecer a existência alheia e, por que não, garantir uma minicelebridade própria. Falar é imposto nacional de sociabilidade: em país onde tudo é pessoal, garrou-se a ideia de que a maior prova de rejeição é o silêncio.

E pode ser de fato, se vier embrulhado em desistência e frieza. Mas para mim, particularmente – e eu tendo a pensar que para alguns –, silêncio é alívio, presente, carícia. Me possibilita escutar o que estou me dizendo no ônibus ou no recreio, me liberta os neurônios para captar o ritmo do livro, me permite arrumar informações que entram jogadas no cérebro em meio à zoeira, me autoriza voar sem a interação social pesando de âncora, me deixa livre em mim. Tenho boa relação comigo, então silêncio não me é casa assombrada, e sim spa cerebral. Para dormir, escrever, ler, matutar, lembrar, roteirizar, decidir, pesquisar referências, tecer aulas, destrinchar legendas de tevê (sim, até para compreender o que tem som, já que só consigo receber plenamente alguma coisa se todo o resto emudece): silêncio. Silêncio é a paz, silêncio é o veludo, é o início da cura. Especialmente quando silenciam os ruídos da ansiedade humana – zaps, telefones, blablablás sem objetivo ou riqueza, televisões de consultório, desesperos de vendedores. Mundo, sossega um pouco as turbinas; cala-te, sésamo.

Sou chata? Você me pegou, sou chata. Mas não posso evitar o desgosto de ter o vagão do metrô invadido por um papo eterno e estridente, um nhoinhoinhoinhóim enjoativo, gargalhado (se houvesse enfarte por inveja, eu caía mortinha de saudade dos silenciosos metrôs japoneses, que nunca conheci). Não posso evitar o olho cuspindo fogo quando o fone do vizinho revela toooooda a setlist, e zumbe um tzztzzztzzztzztzzz de enlouquecer monge. Não posso evitar o ar amargo e infeliz quando quero recolher cada palavra do programa, da canção, do aviso, e um ser desprovido de semancômetro acrescenta muito, MUITO som à minha pequena tragédia. Sou chata, vá lá, mas talvez o agravamento da chatice sonora tenha ficado proporcional à engorda de decibéis nesta nave louca, que mais escândalo faz à medida que mais entra em pane. O planeta –o Brasil ao menos – anda em surto de urgência, anda em posição de ataque, e cada momento da vida coletiva pede o grito de guerra de quem se vê assaltado em sua sanidade.

Eu, no entanto, vos peço: calai-vos e escutai. É em silêncio que as verdadeiras revoluções se tramam.

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