quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Insolações

Já me defini aqui como primaveril: não gosto de aridez fria nem quente, de deserto branco nem amarelo. Gosto daquela serenidade colorida que enfeita romance do século XIX – parapeito com flor, hera tomando meio muro, musgo aveludando a pedra, buganvília abraçando a pérgula, renda verde de flamboyant contrastando com céu impecável, com dourado de tarde caída, com cacho de acácia, com azaleia toda rosa em botão. Gosto de janela azul sobre parede branca, gosto de varanda com mensageiro dos ventos tilintando leve, com cinco ou treze vasinhos fofos. Tudo poético, tudo perfume e delicadeza. Essa é a chave mestra: delicadeza. Mesmo curtindo montanha-russa, sou ligeiramente avessa ao exacerbado.

Digo isso porque olha o carnaval aí, gente; lá vem ele, lá vem ele, e esse exagero ensolarado me irrita. Sou órfã do fim do ano, adoro outubro-novembro-dezembro com seu clima de “acabou o tempo, cozinheiros: hora de empratar”. Há uma graça romântica nos preparativos, luzinhas escorrendo das árvores, a combinação de verde e vermelho com cara de Europa. Embora ridícula, a presença da neve artificial nos distrai um pouco de nossas escaldâncias. É tempo mais suave, mais temperado, menos histérico (OK, tem a histeria comercial dos presentes – mas eu amo tramar presentes). No carnaval a primavera evapora, já estamos há mais de mês sem decoração fofinha, os programas há semanas fazem especial de verão que é sempre areia-surfe-coqueiro, o Rio é um permanente meio-dia – 48 graus e subindo –, é muito suor mesmo no corpo recém-banhado, não se pode dar um passo sem lançar mão de lencinho úmido para recuperar a dignidade, não se consegue manter a pele fresca e lisa: fica animalesca, peguenta. Aqui o verão já anda o cúmulo, e o carnaval é o cúmulo do verão. Sua-se o bastante em casa e sozinho, mas por que não (pensa essa gente doida de pedra) suar baldes e bicas em coletividade, debaixo dum sol fritador de neurônio e pulando, tresloucando e desidratando? Nada mais estimulante do que necessitar de soro caseiro na primeira esquina.

Mal aí, queridos, mas não consigo deixar de achar insalubres essas insolações malucas. Juro que não é frescura: é frescor. Prefiro o calor ao frio, só que ultimamente moramos no Vesúvio, e não há possibilidade de ouvir samba-enredo sem associá-lo ao efeito estufa de cada fantasia, ao desgaste de atravessar a Sapucaí em dança contínua, ao mar humano de lava e loucura. Nada contra os desfiles, desde que eu os veja do camarote que tem meu CEP. Sou do tipo que busca o locus amoenus, vai à praia somente para permanecer no mar, estar com ele; sou do tipo que ama a doçura e não o cítrico, o esperto e não o cômico, o dito e não o gritado, o agradável sem escândalo. Sou do Natal, da água de coco, do mate, do strudel, da brisa cheirosa de chuva, do livro na cama após o banho, da renda, do bordado (não, não faço bordado), do chocolate intenso mas não amargo, do entorno de cachoeira, da cerejeira, da kokeshi, do silêncio, do luar, do passarinho. Não me venham com o áspero, o arenoso: quero o mundo macio e batido com leite condensado.

Com pouco gelo e muita montanha-russa, por favor.  

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