quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

Ajuda o Sol

Era o que dizia aquele hai-kai de Millôr: “Tem cautela;/ Ajuda o Sol/ Com uma vela”. Mandou bem, Millôr. Não falta no mundo quem desperdice sua abundância de sorte, quem brinque de dançar no abismo, quem abuse de seu potinho de ouro imaterial (ou material); é gente que talvez não se acostume nunca a merecer, e, para se livrar de merecer, gasta seu quinhão de coisa boa na primeira esquina. Gente que não tolera a felicidade que lhe queima as mãos, gente de alma tão culpada em ter que se apressa em garantir sua impossibilidade de manter. Ê coração estranho! esse que se nega à autogenerosidade de se dar uma vela, porque já há muito se negou à própria fartura do sol.

Olhe, coração esquisito mas não raro: deixe-se de pudor besta; descarte o orgulho que mora até na baixa autoestima, até na desesperança. Pela vaidade reversa de não conseguir lidar com luz, não vire breu. Porque há desses, os que fazem chantagem emocional com o mundo: não é minha praia ser astro-rei, então você vai ver, não vou ser nada, vou engolir tudo, buraco-negromente. É possivelmente mais fácil, menos trabalhoso, mais marcante, mas não é lógico. Se o muito nos pesa em excesso ou se não despenca do céu em nossa cocuruto, continua sendo melhor o mais ou menos – e mesmo o pouco – do que o coisa nenhuma.

Ajude o Sol, coração esdrúxulo. Se a profissão desejada se mostrou inviável, escancare outra janela, abra outra história potencialmente luminosa. Se sofreu um naufrágio amoroso, arregale a atenção para outros faróis. Se carreira e namoro brilham, mas ainda assim existe uma saudade tremenda do que nunca foi, geradores de energia nova não faltam: a viagem inusitada, o hobby lucrativo, o curso impensado, o trabalho voluntário. Se há muito não surge na testa a lampadazinha de um bom plano, se há anos se perdeu a clareza de todos os porquês, se faz séculos desde a última faísca do arrebatamento de viver – sempre se pode achar em outra página uma melhor e maior ilustração, um jovem insight, um pedacinho de lucidez não previsto, não suposto e nem por isso menos fundamental.

Sob a força do meio-dia, debaixo de luar ou de eclipse: ajude-se, coração cismado. Não precisa ser Sol, que é muita carga, mas se permita uma lanterninha no mínimo, para se conduzir ao assento. Tem muita maneira não frankstênica neste mundo para a gente se dar um impulso – se dar um clique – se dar à luz. 

Nenhum comentário: