quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Liberdade, liberdade

Hoje, no Brasil, é simultaneamente Dia do Artista e Dia da Infância. Coincidência não é. Ser artista de qualquer especialidade não passa de uma licença para continuar brincando. Difícil encontrar profissão mais séria.

Séria, sim – por duas principais razões. Primeira: na arte nos reconhecemos desorgulhadamente como os eternos ensaístas que somos. Arte é o campo de exercitar o erro sem o peso da consequência fatal, um minilaboratório de vida montado para a prática do perdão próprio e alheio. Se erramos como professores, revisores, goleiros, policiais, engenheiros, farmacêuticos, agricultores, fiscais, metalúrgicos, caminhoneiros e (muito destacadamente) médicos, babaus: criam-se traumas, derrotas, intoxicações, desabamentos, ruins sintomas, piores mortes. Não na arte. Um soneto com desvio de métrica, um romance com falha de cálculo, uma novela com barriga de enredo, uma escultura com problema de aresta sai sem vítimas. Até um tropeço de coreografia no Kirov gera, no máximo, cara feia. A não ser que o artista seja um Cisne negro da vida, lapsos na arte não matam. Nos dão tempo e respiro necessários para treinar humanidade, liberdade para saborear devidamente as tentativas. Em termos de saúde, jogo, ensino, não há tentativas. Há finalizações. Nada de espaço para futilidades como ser mulher ou homem.

Em segundo lugar, arte não é coisa que se faz (exclusivamente) por contingência. Faz-se por precisão, carência, desafogo, pobreza, fome até – vá lá. Mas não há chance de o artista não ser impelido por um cadinho que seja de prazer. Pode-se dar aula porque outro caminho não se abriu, e detestar a função improvisada; pode-se encarar a medicina porque pai, avô, bisavô e todos os tataras anteriores foram médicos, e ainda assim ter horror ao consultório herdado; pode-se assumir o cargo de técnico judiciário porque foi o concurso no qual se conseguiu aprovação, e contar cada segundo para a aposentadoria. Não há remota possibilidade, porém, de a manifestação artística não juntar o útil (quando existe útil) a qualquer coisa de agradável, ou o sujeito em questão optaria por torturas mais rentáveis. A arte torna impraticável o engodo de nós mesmos. Inviabiliza o fingimento da alegria profissional. A arte pode até casar por interesse, mas só nos aceita – também – amantes.

Artistas acabam por ser aquelas criaturas que nos resumem. Nos resumem pelo menos em essência teórica: tentantes, falhantes, aprimorantes e movidas, na caça de seu Graal, por gasolina de amor em estado mais puro, de sede na forma mais sincera. Seres automotivados na brincadeira própria, seres autoapaixonados, autoimpulsionados, seres com gerador particular. E suma: o que deveríamos ser se não estivéssemos perdendo tempo sendo inutilidades tão urgentes.

Em suma: crianças.

4 comentários:

Matheus Laville disse...

Liberdade porque é artista e Liberdade porque é criança? É isso?

Anônimo disse...

Criança criança
Estou te seguindo
Visite o meu blog
http:madaschutze.blogspot.com

O Melhor da ChinaKI.com.br disse...

Muito legal...
Parabéns

Unknown disse...

Hum, excelente texto. Apesar de um pouco complexo pra minha cabecinha rs

De fato, ninguém faz arte por falta de opção... Arte é feita pela necessidade de se expressar.

http://oldschoolgeek13.blogspot.com/