Foi, se não me engano, no capítulo de ontem da novela A vida da gente. O médico que cuida de Ana, a protagonista em coma, alertou a mãe possessiva da mocinha: sua dedicação interminável à filha era muito boa, muito bonita, mas já estava em tempo de dar também alguma atenção à sua vida particular. “Minha o quê?”, repetiu Eva, tão aturdida como se a tivessem mandado escalar a seleção do Zaire. O doutor esclareceu do que se tratava. Aquela coisa, sabe, que se tem fora do hospital? “Ah, não, doutor” – ela sorriu, mais ou menos compreendendo o que ele tentava dizer – “eu não tenho vida particular. Minha vida é a Ana, sempre foi. Nós somos in-se-pa-rá-veis.” E ali permaneceu a motherzilla interpretada por Ana Beatriz Nogueira, observando a filha com carinho aterrorizante.
Eva é fictícia; seu comportamento insano não é um poço de realismo. O discurso, sim, é realista. No que há de péssimo. Não somos poucas as criaturas que vivemos de razões emprestadas: seres sanguessugas que terceirizam a própria existência vampirizando o cangote de outra criatura – ou de um trabalho, ou de um propósito. Menos pior quando é de um propósito, em especial se muitíssimo elevado. Acabar com a fome no planeta, por exemplo. Ruim demais se for de um trabalho: mutilam-se outras necessidades, sedes e mundos, e aquele ser se torna monofacial, monotemático, monótono. Mas terrível, perverso mesmo, quando cravamos os caninos num outrem que deve gerar energia suficiente para viver por dois. Que desde sempre carrega o fardo parasita ao qual, por acréscimo, tem o fardo pior de não poder decepcionar. Uma relação a três – o viciante, o viciado e sua tonelada mórbida de expectativas. Bom para ninguém, aberrante para todos.
Passar adiante a procuração de nossa felicidade é um tipo de ódio. Deve-se, no fundo, desprezar profundamente o bem-estar daquele em quem sapecamos arreios, cabrestos, correntes. Precisa-se nutrir tanta reverência, tanta admiração pelo objeto hiperamado como senhores de engenho nutriam pelos escravos que eram suas mãos e pés. Depender não é amar: é escolher a vítima conveniente, o alvo de abate. Amor que mereça o rótulo necessita já a princípio ser livre, no sentido de pisar macio para não virar hóspede que incomode. Amor caminha plumamente, delicado na atenção, de sobreaviso na leveza; voa mansinho, flutua, não se arrisca a pousar e pesar. Pousa como quem sopra e permanece com a suavidade de quem não estivesse.
E só assim – desengaiolado, desengaiolante – consegue ser-se. Amor pode e deve ter documento. Desde que limite as algemas às ocasionais de pelúcia rosa, para eventualidades de lazer.
Eva é fictícia; seu comportamento insano não é um poço de realismo. O discurso, sim, é realista. No que há de péssimo. Não somos poucas as criaturas que vivemos de razões emprestadas: seres sanguessugas que terceirizam a própria existência vampirizando o cangote de outra criatura – ou de um trabalho, ou de um propósito. Menos pior quando é de um propósito, em especial se muitíssimo elevado. Acabar com a fome no planeta, por exemplo. Ruim demais se for de um trabalho: mutilam-se outras necessidades, sedes e mundos, e aquele ser se torna monofacial, monotemático, monótono. Mas terrível, perverso mesmo, quando cravamos os caninos num outrem que deve gerar energia suficiente para viver por dois. Que desde sempre carrega o fardo parasita ao qual, por acréscimo, tem o fardo pior de não poder decepcionar. Uma relação a três – o viciante, o viciado e sua tonelada mórbida de expectativas. Bom para ninguém, aberrante para todos.
Passar adiante a procuração de nossa felicidade é um tipo de ódio. Deve-se, no fundo, desprezar profundamente o bem-estar daquele em quem sapecamos arreios, cabrestos, correntes. Precisa-se nutrir tanta reverência, tanta admiração pelo objeto hiperamado como senhores de engenho nutriam pelos escravos que eram suas mãos e pés. Depender não é amar: é escolher a vítima conveniente, o alvo de abate. Amor que mereça o rótulo necessita já a princípio ser livre, no sentido de pisar macio para não virar hóspede que incomode. Amor caminha plumamente, delicado na atenção, de sobreaviso na leveza; voa mansinho, flutua, não se arrisca a pousar e pesar. Pousa como quem sopra e permanece com a suavidade de quem não estivesse.
E só assim – desengaiolado, desengaiolante – consegue ser-se. Amor pode e deve ter documento. Desde que limite as algemas às ocasionais de pelúcia rosa, para eventualidades de lazer.
6 comentários:
Lugarzito, gostei.
Adorei o texto! me visite sigo todos que me segue! bjus
Como sempre nunca me decepciono!
Parabéns
mairacintra.blogspot.com
Gostei bastante, se quiser me segue, sigo todos.
O amor quando sufoca nunca é saudável, ainda mais quando se encontra nesse sentimento uma razão para preencher um vazio existencial, como parece ser o caso da personagem da novela. Ela projeta seus sonhos na filha, como se a pobre coitada vivesse a vida dela e da mãe assim sem mais e nem menos. E isso aprisiona pois a partir do momento em que passarinho quer ser livre tal vontade acaba soando como uma traição para que ama tanto e até demais.
Costumo dizer que tudo tem limite, mas nem tudo tem receita. Somos donos das nossas próprias medidas. Quanto é DEMAIS para você? talvez seja muito pouco para mim, e vice-versa. Há quem gosta de amor-apego-zelo em excesso. Pessoas que fazem loucuras por atenção. Cada louco com sua mania rs
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