quarta-feira, 27 de maio de 2020

O direito de lembrar

Photo Album And Coffee Cup In Fall

Como disse Fábio Porchat no maravilhoso Papo de segunda de anteontem, todo dia a consciência de nossos privilégios nos dá uma porrada. Quem assistiu ao programa sabe o quanto o segundo bloco – no qual os quatro meninos de praxe e o convidado Manoel Soares, jornalista e presidente da Central Única das Favelas, debateram sobre as memórias registradas em foto – foi ricamente doloroso. Para mim, para o Fábio (o meu aqui de casa e o Porchat do estúdio), fotografias sempre foram uma realidade afetiva, uma presença familiar em todos os sentidos; mil vezes folheei os álbuns de infância, o do casamento de meus pais, aqueles de pessoas bastante anteriores a mim mas cujos rostos puderam alcançar-me. Investiguei a lembrança acessível de avós e bisavós, me espantei com suas meninices, me reconheci na juventude de minha mãe, vi a carinha dos alunos que ela já não tinha quando nasci, estremeci de fofura ao constatar que saí da maternidade como um esquimó vermelhamente bochechudo. Ainda que seja cria dos anos 80 e só com mais de década de vida tenha começado a conviver com videocassetes caseiros, cresci com registros móveis da primeira comunhão, dos 15 anos, da crisma, da formatura de escola e faculdade; e os eventos menos bombásticos, embora não aprisionados em pleno som e movimento, moram no mínimo em imagens silenciosas, sonolentas, algumas já douradas ou coradas de muita idade – mas que lá estão. Sempre lá estiveram. E, até anteontem à noite, eu nunca havia realmente me demorado na possibilidade de que, para uma quantidade absurda de pessoas próximas, elas jamais tenham estado. 

Veio de Manoel Soares o tabefe no meio da alma: com a mesmíssima idade que eu, ele não possui uma única foto de seu pai. DE. SEU. PAI. E nem é apenas pelo fato de nossa geração (e a passada, e a passada...) ser obrigada a pagar para revelar fotografias, dar uma booooooa volta no shopping ou no quarteirão enquanto as danadas não saíam da câmara escura, num processo demorooooooso e não necessariamente barato. Por isso também; mas a explicação é bem maior e pior. Conforme o jornalista apontou, inúmeras famílias residentes de comunidades/periferias acabam simplesmente PERDENDO essas (já poucas) lembranças no meio de enchentes. Não há tempo, não há condição de salvar senão o estritamente necessário – ou nem ele. Numa "boa" hipótese, resgatam-se os documentos cheios de letrinhas frias que fazem as criaturas existirem para fins legais, em especial para o trabalho (sublinhe-se, aliás, que a foto mais antiga de Manoel é a de sua carteira profissional). Porém o quase imponderável, aquilo que "só" se justifica pelo afeto, esvai-se, afogando camadas e camadas de subjetividades, histórias, referências, resiliências que o Estado não exatamente se empenha em preservar. Nossa ficha corrida como país tende ao exato oposto; não à toa – como o entrevistado fez questão de lembrar –, até hoje não temos um museu que registre suficientemente as milhares de memórias submetidas à escravidão no tempo do império. Mesmo os documentos da escravidão foram queimados (diz-se) por ordem de Rui Barbosa; e, por mais que a intenção do ex-ministro tenha sido (diz-se também, não sei) evitar que antigos "senhores" tentassem pedir indenizações após a abolição, o fato é que um material gigante se perdeu para a História e as histórias, para os livros e as famílias, os arquivos e os descendentes. Perdeu-se também para a devida infâmia dos culpados, já que essas certidões de vergonha infelizmente não assombrarão bastante os álbuns dos nhonhôs. 

Temos de dormir, ou de preferência deixar de dormir, com esta verdade lancinante: no Brasil, as famílias pretas e pobres não têm o direito de lembrar. Suas raízes são incineradas por ordem do Estado ou submersas nos refluxos de desigualdade que o Estado não tenta impedir. Seus pais e avós perdem os indícios de nascimento; seus filhos (como João Pedro) perdem os de morte. Seus ícones de resistência são sumidos, negligenciados, difamados e relativizados – caso de Zumbi dos Palmares, a quem a historiografia branca teima em atribuir escravos, embora (conforme observou o querido Emicida) não haja evidências reais nesse sentido. Seus nomes e sobrenomes de matriz africana são aterrados por nomes e sobrenomes de sílabas europeias, metendo-se uma tesoura cruel nas chances de reconstituir a genealogia. Suas crenças ancestrais são perseguidas e demonizadas. Até seus impulsos de futuro são, em cada ocasião possível, mutilados da construção de uma memória: gerações de negros a fio precisaram crescer quase sem espelhos na mídia, na arte, no mundo dos negócios, na ciência, nos brinquedos, nas passarelas, nos gibis. Não somente a conexão com tudo que foram, viveram, amaram, construíram lhes tem sido criminosa e recorrentemente sonegada; ainda lhes é roubada (hoje menos, graças à maravilhosa atuação dos movimentos identitários) a própria lembrança que não apareceria nas fotos, a lembrança de terem acreditado em tudo que poderiam vir a ser. 

Sim, vivemos num país tão estúpido, tão vexaminosamente constituído, que até os direitos de lembrar e de esquecer são privilégios de cor e classe. O Brasil é uma Medusa que busca petrificar a maior parte de seus filhos no tempo; cabe a nós escapar do empedramento da consciência obrigando-o, di-a-ri-a-men-te, a se confrontar com o próprio reflexo.

Um comentário:

sertania41 disse...

Um país de memória branca. Branca com a cinzas de nossos ancestrais.