terça-feira, 26 de maio de 2020

Não tenho estômago

Comer Laranja Doce - Foto gratuita no Pixabay

Não quero posar de borboleta sensível, mas confesso: meu estômago é um viúvo porcino. É estômago que age como se tivesse gastrite, sem nunca ter tido. Sinceramente não sei como uma criatura consegue mandar pra dentro maracujá, kiwi, acerola, suco de laranja; só de lamber abacaxi, o esôfago vira esôFOGO e as aftas pipocam. E no entanto, por mais que três ou quatro vezes já me tenham endoscopizado, em busca de um flagrante, nada: o estômago não quer rótulos, não quer oficializar relações, é apenas rebelde e tem preferências. Tem limites, melhor dizendo. Meu orgãozinho teimoso é simplesmente incapaz de ser como os que tomam comprimido ou bebem água sem azia, é incapaz para o ácido e o cítrico (até sombra de ácido e cítrico), e se reserva o direito de não dar explicações. Já foi mil vezes encostado na parede, mas não confessa; é aquela femme de filme noir que olha de banda, em desafio – e, a não ser que saia presa da sala do detetive, vai continuar sendo exatamente o que é. 

Mais alguém tem essa peça rara na barriga? Não recomendo. Inclusive sugiro que cutuque, cutuque, até o infeliz admitir pro analista qual é o seu problema, afinal. Mas não é do estômago físico, embora absurdamente amofinante, que quero falar no fim das contas; é da ausência de estomaguice mental que me faz andar no Brasil sob efeito de um Mylanta permanente. Não se trata da negação do incêndio, ao contrário: estou tão, mas tão consciente do nosso Vesúvio que, se não for pelas doses diárias de aturdimento (gif de porquinho-da-índia mastigando, vídeo de coala adormecido, romance da George Sand), é capaz de eu mesma ficar manifestada na Fênix Negra e sair fulminando outros e uns. Tomar ciência dos números e gráficos – e tomar ciência de quem os ignora – me tornaria potencialmente mortal para mim e o mundo, sem o sal de fruta das palavras cruzadas e dos episódios de Cold case. O ódio a esse império do ódio me destruiria, se eu o visitasse e encarasse constantemente na jaula. Temos de conhecer nossos monstros o suficiente para monitorar onde e de que tamanho estão, porém não com apaixonada intimidade, já que o abismo nos suga quando nos olha de volta.

O costume de socar a fera em sua prisão faz a gente esquecer que a coisa é puxada. Mas é puxada. O Mr. Hyde que me habita quer pegar pelos cabelos nosso Voldemort-em-chefe e alimentá-lo com água do Mar Morto. Quer arrastar cada bovino verde e amarelo para a crueza dos hospitais (não como pacientes, mas como aqueles que limpam, suam, entubam, sofrem, escolhem, se esgotam, não comem, não dormem, atracados na pior batalha). Quer dar na cara de cada negacionista pra ver se o exorciza do transe. Quer meter um aparelhinho de Laranja mecânica em cada olho de cada estrupício acometido de burrice crônica. Quer sacudir com furor cada criatura tomada de paixão energúmena pela economia, cada idiota pobre regido pelo encosto de um canalha rico, cada desgraçado que está vivendo seu sonho de princesa ao usar modelito de Ku Klux Klan. Meu Mr. Hyde está hidrófobo por dentro e Dr. Jekyll por fora, brincando de ter equilíbrio e criando coquetéis mentais de Estomazil.

Por enquanto não tive gastrite, mas minha nacionalidade é uma úlcera.

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