segunda-feira, 25 de maio de 2020

A paixão que calhar

Anel Livro Casamento - Foto gratuita no Pixabay

Conheço poucas falas mais lindas sobre a relação do leitor com a leitura do que aquela de Jean Rostand: "Peço a um livro que crie em mim a necessidade daquilo que ele me traz". Exatinho. Por mais que cheguemos àquelas determinadas páginas por uma qualquer força estranha a elas – imposição do estudo ou trabalho, cisma de amigo, amofinação da mídia, tédio molhado de chuva, autocobrança a respeito de nosso score de clássicos –, uma vez entrados para além da soleira da capa, queremos uma espécie de paixão. A que calhar. Esperamos que, apesar do enredo cretino, haja ao menos um personagem com quem trocaríamos piscadelas ou alianças, um daqueles que se nos atravesse para sempre no peito e na garganta. Esperamos que uma frase nos encontre e agarre no meio das linhas mais ociosas – a frase que se atire do banco de reservas ao nos ver e grite: "Viu? Viu? POR ISSO você chegou até aqui, e sua visão da carreira não será mais a mesma afinal!". Esperamos descobrir o verso perfeito e ainda ignorado para música, para um cutucar de vida, uma epígrafe, um nome de filho, uma citação de parede. Mas é direitinho isto: não abrimos um livro com total despretensão. Não abrimos um livro sem esperar.

Claro, ansiamos também um monte com relação a pessoas, filmes, viagens, porém é consideravelmente mais raro trazer alguém para a cabeceira sem prévios interesses e esforços, ou adentrar o cinema no automático, ou casualmente embarcar num voo e esbarrar num país. Para cima de pessoas, filmes, viagens, nós costumamos nos empurrar já um pouco mais planejados – e, portanto, mais conscientes da expectativa. Normalmente não vou ao novo crush ou à Eslovênia dizendo: olha, estou aqui mesmo, né, então me faça gostar de você; as chances são de 10 para 1 de que seja: poooooxa, gostei de você, então estou aqui. No campo dos filmes (séries, novelas, por extensão), a semelhança com a situação dos livros é em tudo maior; a preparação diminui, a probabilidade do fortuito aumenta, há o embarque em histórias que podem seduzir rapidamente, sendo ou não buscadas. Ainda assim, a natureza visual dos enredos filmados costuma impedir que eles cheguem até nós sem terem sido mil vezes entrevistos: no trailer, no comercial, nos memes de Face ou Whats, lá estão as imagens teimando e teimando, chamando e se oferecendo, se insinuando às nossas necessidades, criando-as sem nossa vontade de tê-las. Livros, não. Livros são conchas pudicas, escondedores da pérola, não se revelam na mídia. Podem ser anunciados, mas não se permitem adivinhar nem intuir em duas frases; não se entregam. Nenhuma pré-experiência ou pré-desejo nos mostrará o que só acharemos ao investigar cada uma de suas esquinas. 

Livro é um salto de fé, um namoro instantâneo que vem de esbarrão ou de conveniência, um susto sempre, sempre! – não importam nada as resenhas lidas. Livro é, a um tempo, muito súbito, muito simples e muito íntimo: acontece todo por dentro, não exige ambiente, não pede ajuste de volume, funciona sem a velocidade ideal de conexão, é pegar ou largar; é investir ou não numa trilha nova que vai não sabemos aonde, não sabemos como, só se abriu toda fácil e aguarda que queiramos descobrir que nunca poderíamos ter passado a vida toda sem a visão daquela paisagem final. Pessoalmente, não sigo em qualquer trilha, sou específica em leituras; porém, se for entrar na leitura, entro para amá-la. Chego para ser conquistada, para adicionar o autor a meus amores, para receber uma aula de construção de personagem, de trama e de entendimento humano. É biscoito da sorte, é pescaria de festa junina; não sei o acréscimo que vem. Mas estou totalmente disposta a sempre ter precisado do que virá. 

(E é fato que sempre precisamos. Se tem dúvida, tente eliminar da sua construção todos os livros que foram tijolinho, e veja se toparia voltar a ser o que sobra.)

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