quarta-feira, 20 de maio de 2020

Nem que o mundo caia sobre mim

Still Waiting For My Train | Henry Burrows | Flickr


Cantarolei no modo aleatório aqueles versos do Lupicínio – "Nunca,/ nem que o mundo caia sobre mim,/nem se Deus mandar, nem mesmo assim/ as pazes contigo eu farei..." – e fiquei automaticamente pensando em quais seriam os meus nuncas. A primeira ocorrência vem logo das entranhas: eu nunca, nunca, nunca! daria qualquer espécie de apoio a essa fábrica de aberrações que agora nos governa. Nunca trocaria nem aperto de mão, nem aceno de cabeça, nem o mais ligeiro bom-dia com o Voldemort-em-chefe, pela simples razão de que não respiraria por dois segundos o mesmo ar – a não ser que eu depusesse contra a criatura num tribunal internacional, com grandes exclamações, requintes e demoras. Mas não, também não o deixaria morrer sem atendimento, se dependesse de mim. A força de humanidade, creio, se sobrepõe a qualquer memória de desumanidade, nojo, desprezo, rancor. Eu o socorreria, sim, que não sou desses Comensais da Morte que o servem.

Fica implícito, pelo parágrafo anterior, que eu nunca permaneceria a menos de cinco galáxias de distância de nenhuma suástica, capuz da Klan ou camisa verde-amarela de mesma laia. (Aliás, nunca torcerei pelo Brasil com esse agora uniforme de capitão do mato, maldito por todo o sempre.) Nunca endossaria qualquer tipo de preconceito – e esse não endossar implica nunca tolerar os intolerantes. Jamais renegaria a minha fé – e esse não renegar implica jamais me agregar aos que segregam. Eu jamais trairia. Jamais teria opiniões de encomenda. Jamais entraria em esquema de propina. Jamais maltrataria um animalzinho, incluindo os de nossa espécie (OK, não posso prometer muita coisa com relação a baratas, formigas e assemelhados; mas estou tentando, estou tentando). Jamais usaria um casaco de pele legítima, JAMAIS caçaria se a morte não fosse a única alternativa – embora eu ainda consuma carne e ainda tenha no armário algum cinto ou bolsa de couro. Estou tentando, pô.

Para subir a esferas mais leves, posso jurar que nunca vou acampar voluntariamente em regime de "ó, o banheiro é ali no mato". Me recuso sequer a pensar em comer algum acepipe que Timão e Pumba comeriam e que ainda esteja se mexendo. Nas novelas, eu não seria o personagem imbecil que cede à chantagem, e escancararia logo o segredo pra geral (eu, hein; sou bagunça? Sem tempo, mano). Nas ficções teen, eu não deixaria o colega "esquisito" da sala desabraçado e descarinhado – por sinal, os outros é que são esquisitos. Em nenhuma realidade oficial ou paralela eu seria craque em esporte, xadrez, sudoku, videogame; nem beberia até transtornar as ideias; nem seria tomada pelo encosto do ciúme a ponto de escarafunchar redes e roupas do crush, assim como sob NENHUMA hipótese aceitaria o ciúme de quem quer que fosse. Nunca, nunquinha mesmo, jamé. E não trocaria de time, não usaria salto agulha, não fumaria, não furaria a orelha, não me hospedaria num hotel de gelo, não aprenderia a dirigir, não dormiria em barraquinhas à espera de ingressos ou de ídolo algum (não, nem se eu tivesse filho e ele ensaiasse uma greve de fome), não faria plástica just because, não escalaria Everests de nenhuma altura, não pisaria num clube de tiro, não tocaria sequer numa arma de fogo. Asco. Horror.

Há nuncas que não posso lavrar em cartório: fazer tatuagem, voar de ultraleve, mudar de país e outras tantices. São improváveis, mas não a ponto de jurar em tribunal. Barreiras de medo, cisma ou desinteresse podem cair com o tempo, molinhas – e é necessário e saudável que haja espaço para muitas simpatias se abrirem. O que nos revolve nas profundezas dos princípios, no entanto, não está em negociação, e não se supõe que devamos fraturar o esqueleto que nos forma em nome de qualquer mindset desconstruidão. Sou esvoaçante, gulosa de vida, curiosa, adaptável, amiga de experiências felizes e seguras; mas abrir mão de uma paz convicta só por quererem me colonizar com alguma necessidade importada?

NEVER.

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