terça-feira, 19 de maio de 2020

O amor nasceu ontem

Banco de imagens : luz, vidro, cabo, linha, verde, cor, Trevas ...

"O meu amor nasceu ontem. Eu nasci um segundo depois." (Miguel Esteves Cardoso)

Sim, nosso amor nos antecede; nem que seja por um segundo, tem de ser mais velho que nós para fazer nosso parto. Pode-se nascer sem o colo do amor do outro, sem ter sido projetado e desejado, mas não se nasce sem desejar. Pensar em nascer sem desejar é como supor que um novo humano vá sair do ventre e automaticamente flutuar, sem precisar de berço; que não necessite de uma razão que o acolha, de um objetivo que o aconchegue. A possibilidade, a sina, a destinação de amar – como queiram – é a nossa gravidade. É o amor que nos pousa.

"Ah, mas há seres que não amam." Há sim. Uma coisa, porém, é não terem ainda endereçado essa pulsão ancestral de amor para nenhum algo ou alguém, e outra é não terem a tal pulsão. Isso é impossível, tenho para mim que francamente impossível. Mesmo os psicopatas, ainda que sejam realmente incapazes de amar, não creio que consigam escapar ao menos da febre ou da faísca de desejarem ser amados; mesmo um cérebro aleijado de empatia será assombrado sempre pela aflição de querer – senão a de se dar, no mínimo a de ser recebido. Está preso à nossa condição um gatilho de preservação para além de nós. Nascemos cofres com uma ou mais chaves perdidas, e sem a perspectiva de uma abertura não nos justificamos. O que guardaríamos tanto para nós, se o tão guardado não tivesse uso?

Nosso amor, nossa causa, nosso alvo de vida, nosso recipiente para transbordamento, nossa vaga de estacionar uma alma saltitante, nosso motor, nossa explicação, nosso destinatário – abre os olhos antes que nosso coração homo-sapiano abra os seus, para que esse pobre e recente coração seja convencido a bater. O caminho não é decidido, mas a fome da caminhada é compulsória. Nascemos com a paixão do percurso; as hipóteses já estavam lá para nos pegarem no colo e nos serem madrinhas, as sereias já cantarolavam nosso tema de abertura antes da inauguração, a sedução que nos injetaria a fúria da vida foi nosso primeiro sopro e já nos fez entrar no mundo com choro e gana. Não somos só pessoas, somos perseguidores.

O que escondem, não raro, é que muitas vezes somos barquinhos encarregados de construir seus faróis.

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