sexta-feira, 29 de maio de 2020

Síndrome felina

Imagem gratuita: ferrugem, ferro fundido, coroa, metal, corrosão ...

Longe de mim falar mal dos gatos, criaturas transbordantes de fofidão, mas uma particularidade é mundialmente famosa: os danados têm uma delícia mórbida em derrubar qualquer coisa que esteja em cima de qualquer coisa. Copos, chaves, papéis, bibelôs, tudo serve à sanha felina de testar compulsivamente a gravidade. Inclusive outros gatos. 

Pois há humanos e humanoides que, por motivos vários, crescem desenvolvendo a mesma síndrome derrubadora. Porém, fora os personagens histéricos e ricos das novelas – que tacam na parede vasos, pratos e o que mais acharem à mão, quando estão furibundos –, normalmente gente é menos criativa e gosta mesmo de derrubar gente. E nem cheguei ao sentido conotativo do negócio; conforme prova a recente "brincadeira" escolar de induzir um colega a pular para fazê-lo estabacar-se, a idiotia humana chega ao ponto de divertir-se com a queda alheia, não meramente incidental e ridícula, mas desastrosa, provocada. Pois é, existem espíritos de porco suficientes no planeta para que a possibilidade de alguém quebrar um osso, sentir uma dor absurda ou mesmo morrer se torne um entretenimento passível de gargalhada e pipoca. Não sei classificar esse fenômeno a não ser como psicopatia galopante; na mais generosa das análises, como vácuo de caráter, ausência absoluta de cultivo familiar, profunda solidão moral, verdadeiro Grand Canyon onde deveria haver noções, amores, referências. "Puxa, mas assim fica parecendo que os fazedores dessas pegadinhas infelizes são monstros." Breaking news: e são realmente, ou estão em vias de sê-lo se não ocorrer intervenção. Nas histórias de ficção, nos documentários, como você chama aqueles que machucam (ou deixam que os outros se machuquem) por prazer? Pois é. 

Mas há os menos literais, e provavelmente bem mais numerosos: os derrubadores emocionais. Com uma carga similar de infelicidade – e uma muito maior de sofisticação – envolvida. Você conhece o tipo: não podem pilhar um indivíduo contente da vida que logo tratam de corrigir isso, menosprezando as razões alheias ou empilhando uma sééééérie de razões contrárias. Claro que não falo dos aconselhadores sinceros, dos amigos de lealdade atenta, que têm direito e dever de zelar pela criatura amada quanto ela está enfeitiçada demais para ser racional. Não falo dos que avisam com amor, embora se arrisquem à antipatia do outro: olha, calma, seja prudente, refaça as contas, analise as palavras, observe os gestos, não invista agora, não confie tão cegamente, não é por aí. Falo dos que derrubam a coisa pela ilógica dos gatos; não por medo, não por defesa ou cuidado; derrubam a coisa parnasianamente, pelo gozo de derrubar a coisa – só porque ela está ali, existente. 

Assim são os que botam vinagre no elogio recém-recebido pelo outro (ou pelo filho do outro), os que dizem que o sucesso veio por sorte de principiante, os que estressam os já enervados pais de primeira viagem avisando que depois piora, os que acendem o pavio de boatos maldosos sobre a promoção da colega, os que sabotam autoestimas na base do "não é por nada não, mas", os que estimulam inseguranças no próximo para implodir, por tabela, seus níveis de exigência. E por que essas almas desmoronadoras boicotam, envenenam, desestimulam, urubuzam conquistas, acinzentam perspectivas, plantam nuvenzinhas, abusam da acidez e do gaslighting? Porque, basicamente, não se sustentam de pé. Não se realizam em suas próprias expectativas, não acham encanto (pudera) em seu próprio convívio, e à força de rastejarem desejam todos em seu chão, em sua sarjeta. Vivem intuindo tristemente que permanecerão sozinhas em seu pesadume, se não impedirem com urgência que os demais flutuem.

Muito ao contrário dos gatos – imperadores de alma solene –, almas derrubadoras não empurram: puxam. Querem companhia dentro do inferno emocional em que já se encontram de antemão.

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