quinta-feira, 28 de maio de 2020

Do nosso lado

Fotos vivir juntos libres de regalías | Pxfuel

Teve outra coisa, na participação de Manoel Soares no último Papo de segunda, que me atingiu poderosamente: quando o jornalista, falando sobre emoções marcantes, contou do verdadeiro êxtase que experimentou na juventude ao entregar para a mãe seu primeiro salário. Foi o momento em que o menino se fez adulto na capacidade de ajudar nas despesas – e o prazer dessa potência de cuidado e proteção continuou sendo buscada por Manoel ao longo da vida, em cada quadro familiar. Senti uma travada no peito (com aquele lapso de encanto dos instantes lindos) ao ouvir as palavras do entrevistado a respeito de seu amor por cuidar; em reconstituição aproximada: "Eu sempre quis garantir que as pessoas não iam ficar sozinhas do meu lado".

Poucas vezes escutei algo tão extenso, tão intenso, tão figadal sobre o que é ser humano em todas as instâncias: garantir que os outros não fiquem sozinhos do nosso lado. Em termos filiais, não deixar que os pais se sintam remando, apenas com suas forças incompreendidas, contra toda a maré do mundo plus um peso ancorado no barco. Em termos paternos e maternos, não permitir jamais que toda a maré do mundo pareça mais acolhedora e viável do que a conversa na cozinha, do que a convivência emparedada de quarentena. Com relação aos amigos, não encarar os desabafos como um tiro de largada para um campeonato de sofrimentos. No caso dos amores – ah! que injustificáveis são, quando uma e outra parte não passam de estepes mudos e piorados da solidão física, e o relacionamento é só vigília de corpo presente –, no caso dos amores não há nada mais crucial: impedir, de todos os modos e com todos os desdobrares possíveis à mente humana, que nossa presença se torne um insulto e magoe mais do que a alternativa. 

Socialmente, temos também uma pilha de solidões a derrubar. Precisamos interromper nossas programações para engrossar causas que só se realizam no plural. Precisamos alimentar a vaquinha para que a mãe solteira, desempregada por efeitos de pandemia, não se ache em desamparo. Precisamos nos comprometer com a rearrumação lógica do mundo, para que crianças não se perguntem por que não têm casa e pais, se há tantos endereços e adultos disponíveis. Pre-ci-sa-mos manifestar gritadamente nosso apoio aos irmãos indígenas, cada vez mais sufocados na terra e na luta. É urgente, absurdamente urgente, que sustentemos os profissionais da saúde com muito mais do que aplausos: que os ratifiquemos, encorajemos e protejamos ficando em casa ao máximo, a fim de aliviar-lhes esta hora de horror. É fundamental, em nossos privilégios, doarmos nosso farto espaço de voz aos que deveriam ter assegurado o lugar de fala. É essencial que estejamos presentes com faixas, placas, alto-falantes, panelas, votos, posts, lives, aulas, pesquisas, compartilhamentos, contribuições, textões de Face, e-mails para legisladores, campanhas de conscientização – barulho, muito barulho, muito espernear, muita teimosia para cima dos que decidem ou podem pressionar os que decidem, de modo que ninguém deixe de ser olhado, ninguém seja esquecido nos trancos do caminho. Ninguém nunca fique para trás.

(Aliás, minto: fascistas podem sobrar, empoeirados, em tempos e galáxias remotas. Tempos e galáxias vazias de qualquer ar, que é para nem o rosnado desse povo se propagar no vácuo de uma solidão ensurdecedora.)

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