domingo, 31 de maio de 2020

Sem estima

Foto profissional gratuita de aborrecido, angústia, angustiado

Achei psicologicamente intrigante um momento do romance Dominique, de Eugène Fromentin, no qual o protagonista descreve a relação entre seus dois melhores amigos – o sisudo Augustin e o estroina (vontade de morar no século XIX só para usar palavras como "estroina"! pronto, passou) Olivier: "Augustin acabou por amar Olivier, mas sem jamais estimá-lo muito. Olivier concebeu por Augustin uma verdadeira estima, mas não o amava". 

Embora entenda perfeitamente que possa haver estima sem amor, e seja inclusive algo frequentíssimo (não fosse assim, amaríamos a maior parte das pessoas que conhecemos mais de perto, o que infelizmente não ocorre), me parece mais complicado supor que haja amor sem estima. Se entendermos esta última como um pré-amor, um afeto sereno e não apaixonado, não estaria ela necessariamente presente e contida onde ele estivesse? É provável que sim, se a compreendêssemos nessa acepção; mas não foi certamente assim que o personagem Dominique a empregou. No entendimento do narrador de Fromentin, "estima" é toda feita de admiração, respeito, aprovação – sentimentos que vão do amigo leviano para o sisudo, mas não o contrário. Augustin, o sério, apegou-se afetivamente a Olivier sem lhe aprovar as ações; Olivier, o instável, respeitou profundamente Augustin sem talvez nunca desejar abraçá-lo. Que maçarocas de simpatias doidas somos nós. 

Mas vá lá, na amizade deve ser uma combinação viável; afinal, não é uma afeição exclusiva, colecionam-se amigos de todos os feitios, como tupperwares com os quais você conta de maneiras variadas. Essa diversidade traz opções tão lindas, que ninguém se tortura se a relação com Fulanílson é mais malucamente infantil, mais gratuita e instintiva, enquanto o lance com Beltraneide é um troço mais adulto, mais cabeça, de apoio profissional recíproco. Acontece: é mesmo assim, múltiplo e normal. No entanto, jamais acreditei – e continuo não acreditando – ser possível construir uma verdadeira ligação de casal na ausência da estima, ainda que com a paixão mais tristão-isôldica, mais romeu-juliêtica, mais desesperada do universo. Partindo do princípio de que é relacionamento trabalhado na exclusividade, o que se deseja? Encontrar no mesmo modelo a maior quantidade de gatilhos que nos disparem. É importante o arrebatar físico, é importante a ternura mais suspirosa, mas é definitivamente ESSENCIAL olhar para as palavras, para as crenças, para os atos do outro com orgulho feliz. 

Não concebo, simplesmente não concebo, como se possa mergulhar numa relação de escolha e de convívio diário sem admirar quem nos acompanha tão de perto, sabendo que moraremos também com suas ideias, que exibiremos em público também seus preconceitos, que nem só de pele e carinhas bonitas a coisa se construirá. Toparemos realmente encarar a solidão cruel de dividir o telejornal, mas ter de engolir nossas indignações em silêncio? Vamos mesmo levar de boas o vácuo absurdo na hora de enxergar amanhãs, a agonia de mentalizar muitos anos ouvindo agressões (por mais que não nos sejam dirigidas) e sandices, a perspectiva gelada de lutar contra a vergonha, o cansaço, a náusea mês após mês? Conseguiremos tropeçar em valores tão inimigos dos nossos dia sim, dia sim? Convenhamos: para quem está disposto ao amor, e não a qualquer gambiarra que entulhe o espaço, falta de admiração pelo outro é a total impossibilidade – é a morte mesma. Sem admiração, pode-se manter qualquer outro afeto, em especial os obrigatórios (pais, filhos, irmãos, colegas cujos pensamentos não respeitamos mas que amamos por hábito); o amor de casal, porém, implica a mais ininterrupta parceria, o trato mais espontâneo das vontades, e vontade alguma fica de pé quando já não encontra seus motivos. 

Nesse amor entre dois, se desaba o querer, inexiste qualquer outra cola que lhe seja anterior.

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