sábado, 16 de maio de 2020

Distraídos morreremos

Iceberg São João - Foto gratuita no Pixabay

Num meme que andou passeando recentemente pelas redes, alguém suspirava que não queria mais ser testemunha ocular da História: muito exaustivo. Não posso discordar. Os que nascemos entre a rabeira do século XX e as primeiras manhãs do XXI vivíamos simplesmente encantados com a mansidão de estudar História nos livros; nossos choques eram distanciados, seguros. Peste bubônica matou a Zoropa toda? Nossa, que horror, felizes de nós que não crescemos entre a ratalhada do mundo medieval, aquele período remelento. Crash da Bolsa? Que droga, hein; força aí, gente. Fascismo, nazismo, ditadura? Misericórdia, QUE TIPO de povo pode ter deixado isso acontecer??? (interrogações, interrogações etc. etc.). Ainda bem que estamos isentos, ainda bem que nossa era é outra, esperta, evoluída, tecnológica, estável, de uma normalidade quase tediosa. Quando éramos crianças, História era coisa já ida e feita; não morta, mas sonolenta, em seu transcorrer de papel no qual não parecíamos estar inseridos. No máximo um Plano Real aqui, um advento de iPhone ali: abalos episódicos que sacudiam sem revirar as entranhas.

E aí 2013 nos deu aquele primeiro susto arregalado de filme-catástrofe, godzíllico como a tsunami cuja gestação não se vê, não se suspeita. Ainda dopados de infância e adolescência, batemos no iceberg e ele nos rasgou. Não nasceu ali de madrugada: sempre ali esteve, imenso, uma inevitabilidade surda. O portal nos atropelou com sua paciência de esperar que caminhássemos para ele, e engoliu como não engoliria se entendêssemos de leme – se apenas tivéssemos nos dado ao trabalho de crer que é preciso ter sempre um plano B contra monstros que engordam no silêncio e na calmaria. Vieram outros anos e seu ciclone de horrores, suas Cilas e Caríbdis que iam acordando em cada quarto do inferno, e nós chocados, indefesos, negacionistas, as entranhas finalmente reviradas, o coração demoroso de entender que nunca estivemos protegidos, nunca houve garantias, nunca na aventura humana existiu navegação serena. Inocentes de nós, que somente nascemos na entressafra e não tínhamos ainda presenciado a troca da guarda. 

Mas está aí; o fato se impondo, o mundo esfregando na nossa cara que é sobre nós que os futuros alunos lerão (provavelmente resmungando: que gente burra), o roteiro do filme sendo impiedoso com os que já tiveram tempo de perceber que deu ruim mas insistem em permanecer na cadeira de balanço, empaspalhados, sem fuga nem reação. Se PELO MENOS a ficção se coçou para tentar ensinar o mínimo a toda uma geração de distraídos, foi que: os egoísmos sempre agravam qualquer ameaça; os egoístas costumam ter a cabeça comida primeiro e ser os primeiros esquecidos pelo público; existe um protagonismo ardente em quem age, mas ele só se torna possível com a assessoria de quem estuda e analisa; o monstro que acreditamos mais improvável é o que mais tempo tem para se fortalecer nas sombras; as histórias contadas por pais e avós vão fatalmente repetir-se em escala Júpiter; os paralisados de horror não terão a folguinha do coffee break: ou descongelam ou se veem (junto com os seus) destruídos. Toda a bananice que desprezamos num personagem é a mesma que precisamos desprezar em nossos egozinhos bocejantes e nossos entendimentos incompletos. 

Alecrins dourados de uma era de transição, achávamos que era tudo literatura, cinema, spielberguice. Quem diria: era workshop.

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