quinta-feira, 21 de maio de 2020

Para João Pedro

Rosa Flor Seca - Foto gratuita no Pixabay

João, você não teve tempo nem coração de se preparar para deixar um mundo que ainda conhecia tão pouco. Era muito, muito cedo, e a inocência se espanta sempre (nem há como ser de outro modo) com o míssil da injustiça que não deveria chegar nunca. Lá estava você, em casa, fazendo o que se espera durante uma pandemia, quando de repente foi baleado pelo choque de isso não ser suficiente; você era pobre, era negro, João, e por isso prévia e ancestralmente condenado em nossas terras, caçado por um Estado que nem sabia quem era você – nem ligava. Você não entendeu nada (ou entendeu absolutamente tudo em três segundos, o que é ainda pior), não sabia que fazia parte de um projeto bem anterior a você e até àqueles homens, não tinha antes se dado conta de que nossa história genocida não espera a presa ir à rua: o carrasco de hoje vai buscar almas e corpos pretos em casa, para destruí-los, da mesma forma que ia buscá-los e destruí-los em seu continente materno. Você não compreende, João; nem eu; ninguém compreende, porque não existe lógica no ódio. O ódio é justamente a resposta dos que não argumentam – apenas babam, grunhem, rosnam, destroem. O ódio é um inferno não verbal que não poderia ser compreensível para seu coração de criança que vivia dando orgulho a seu pai.

Sim, você era criança entre as crianças até a polícia chegar, mas, no momento em que ela entrou, abateu sua infância antes de abatê-lo; você já não era um dos pequenos, era o jovem que precisava garantir vivos a si e aos seus, em puberdade incompatível com a natureza. Eu só posso imaginar sua dor simultânea de tentar proteger e de constatar que você não seria protegido. A solidão dolorosa desse primeiro e último golpe de vida adulta, desse susto feroz misturado com a confusão infantil de não ter seus pais ao lado enquanto você era obrigado a se despedir de tudo: o improviso mais perverso com que se pode estrangular uma existência. Num relâmpago, num instante de granada, num átimo de absurdo social, aquele mundo inteiro que só começou a germinar num peito de 14 anos foi esfacelado pela raiz – pelas raízes. Não sei o que você queria ser, João (talvez médico, talvez guitarrista, professor como sua mãe, escultor, descobridor de vacina ou um monte de coisa ainda não suspeitada nem sentida); porém, embora não o conhecesse, sei o que você era: a doçura, a juventude, a inteligência, a promessa, o potencial de construção borbulhando nas veias, o dom que só você tinha e ninguém repõe, a memória de um jeito de rir que não cabe no álbum, a música preferida cantarolada pela voz que fica ecoando, o delicado processo acompanhado e celebrado com mais de dez bolos de aniversário, o sonho de alguém. O amor da vida de alguém.

João, nós nunca nos encontramos e eu não sou capaz de, apenas pela vontade, desfazer as maldades do mundo; mas eu espero humildemente que você aceite e receba o meu desejo de abraço retroativo, e pelo menos a ambição da acolhida de amor que um país inteiro ficou lhe devendo. Eu sei, não podemos nos redimir com você em nada, porém podemos semear e polinizar dia e noite a paixão de proteger outros Joões, outras Ágathas, outros primos e irmãos seus, outras crianças como você foi e como os seus filhos que nunca serão. Não lhe foram dados anos suficientes para criar uma família, e jamais saberemos quantas gerações deixaram de existir com a sua ausência; só no resta devolver simbolicamente o tempo que lhe foi amputado, plantando os anos que ainda temos nessa luta, nesse compromisso de vida. Não temos mais o seu tempo para ressarci-lo, mas temos o nosso. Que ele floresça em benefício de meninas e meninos como você, João. Que emperremos, enferrujemos e (talvez um dia) quebremos definitivamente o sistema genocida que nos rege, para que mais nenhuma história seja devastada. 

Os brasileiros pedimos perdão, João; mas o Brasil não tem desculpa. Cada brasileirinho como você é o que temos de belo, forte, impávido colosso. Cada tombar desses brasileirinhos nos escancara como o borrão da América.

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