sábado, 30 de maio de 2020

O pulso

Poetry Album - Free photo on Pixabay

A matéria da Revista Pazes é de 2016, porém eterna (guardadas, claro, as atuais impossibilidades relativas à pandemia): no Reino Unido, a associação Kissing It Better organiza leituras de poesia em instituições que abrigam idosos, a fim de deter um bocadinho a perda de memória causada pelo Alzheimer. Os velhinhos reagem lindamente – alguns completando, num sussurro, os versos que decoraram em criança e reemergem espontâneos. Há olhares perdidos em silêncio que se acendem quando começa a leitura, e até registros de respostas mais tocantes, como a da senhorinha que não falara uma palavra sequer desde sua entrada na instituição, mas que se abriu em choro, lembrando a morte do namorado, quando a voluntária do projeto leu um poema sobre um homem que se despedia da amada. 

Os entrevistados da reportagem caminham todos para conclusões irmãs: a poesia "cola no nosso eu mais profundo", "bate na porta da memória", "detona a palavra e as lembranças", "abre as comportas", "devolve confiança aos pacientes" – expressões mais ou menos adaptadas dos personagens ouvidos. Faço coro a essas pessoas queridas, que não conheço e já considero pacas. Poesia é texto afetivo e melódico demais para ser esquecido de todo, se um dia foi realmente sabido e guardado; não põe medo como o bloco duro da prosa, é de estrutura mais rápida, mais molinha aos olhos, bate-se a vista e se pode gostar sem querer e depressa. É a criatura de andar requebrado, feiticeiroso, que se amou com os primeiros encantos da infância e se grudou na mente pelo ritmo, pelo imponderável, mesmo sem glossários e explicações. Pode-se absorver um poema para sempre sem nem entendê-lo, com o fascínio sensorial que dificilmente vai explodir tão gratuito pela prosa. A rima cola, a métrica pede, o corpo intui – pronto: eis uma estrofe inteira de Camões sugada para o arquivo permanente, enquanto dez ou doze sílabas de romance têm pouquinha chance de serem citadas exatamente como nasceram.

Quem não fica com aquelas musiquinhas chicletadas no ouvido por dias, anos, numa jukebox louca e randômica? Poema é tal qual. De vez em quando volta um verso a respeito de nada, como um refluxo: "Sete anos de pastor Jacó servia", "Vozes veladas, veludosas vozes", "Vai-se a primeira pomba despertada", "És bela – eu, moço; tens amor – eu, medo". Não sei se também com vocês, mas eles realmente brotam em pedaços e surpresas feito uma memória do sangue, mais instintiva, encantatória e primária do que as elaborações da consciência. Sou incapaz de ouvir "Ah, que saudades..." sem desfiar, por dentro ou por fora, os oito anos todinhos de Casimiro atrelados aos meus tantos. Se alguém soltar – "Só tu!" –, vou devolver – "... puro amor, com força crua..." –, mais imediatamente do que gostaria; se disserem que alguma ocorrência é na cidade de Marabá, começo: "Eu vivo sozinha, ninguém me procura!/ Acaso feitura/ Não sou de Tupá?". Doida não sou, embora não tenha provas (nem muitas convicções); sou só alguém que levou a adolescência e o princípio da adultice malocada entre estrofes e mais estrofes apaixonadas, mastigando rimas, conhecendo e relendo, amando e repetindo. Já não sou a consumidora voraz dos poetas: agora estou quase somente entre parágrafos. Mesmo assim, os mantras antigos irrompem, cantos de uma família do coração no ouvido de eus antepassados. Todas as pessoas que fui estão coladas para sempre nesse eletrocardiograma de registros sonoros.

Que a poesia, no fundo, é bem isto: o bater do pulso de ancestrais que ainda somos nós.

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