sábado, 23 de maio de 2020

Eu era tão mais velho

File:Grafite da Avenida Sumaré (Avenida Paulo VI), Vários artistas ...

Minha série favorita – juntamente com a adorada Criminal minds – é a também episódica Cold case, infelizmente suspensa há dez anos. Andou sumidinha aqui das telas, mas no mês passado a redescobri, com o coração dançarino, sendo reexibida pelo A&E, embora numa ordem ligeiramente caótica. Não me chateia tanto o caos, já que a graça da coisa é o eventual e não o contínuo; e uma das graças maiores da coisa está na música escolhida cirurgicamente para encerrar cada episódio. Pois então: foi flechada certa quando ouvi a "My back pages" de Bob Dylan, em versão The Byrds; paixão decisiva ao primeiro refrão: "Ah, but I was so much older then,/ I'm younger than that now" ("Ah, mas eu era tão mais velho então,/ eu sou mais jovem agora"). Significativamente, a canção arremata a história de um policial que foi assassinado por ser gay em 1968 – quando o mundo estava longe de começar a ter juventude suficiente para entender as questões mais básicas do amor. É episódio dolorido, doloroso, que ecoa na gente junto com os versos de Dylan e nos põe lamentosos de tudo que se deixa de ser enquanto o espírito (da época, inclusive) não está bastantemente remoçado.

Para quais atos e fatos já fomos velhos demais, sem frescor, sem leveza, sem a plasticidade do cérebro menino que se predispõe a adotar e aprender? Eu, por exemplo – para citar o lúdico –, durante a infância e a adolescência fui matusalém para montanhas-russas, e só em alegre vigor da adultice descobri que as adorava; primeiro em modo light, e em seguida, melhor ainda, com loopings suculentos. Aos 13 anos, talvez não me imaginasse fazendo arborismo; uma invertida de algarismos e lá estava eu, aos 31, caminhando lépida sobre uma corda a 18 metros de altura. Até mui recentemente, participar de manifestações era algo que eu não considerava, por temerário; pois no ano passado foram quatro, cinco, sei lá quantas entraram na conta, com direito a chuva, espremeção braba no meio do povo, fuga de bombas de gás. Até 2017, nem supor que eu pudesse estar um dia na lonjura, no desgaste, na confusão do Rock in Rio; ano passado, já que pintaram os passaportes para a experiência, tudo bem: vambora. Em dias, em minutos, às vezes em quantificações relógias que nem existem no sistema universal e só dão clique no despertador interno, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Finalmente celebramos o desaniversário certo, finalmente a troca de plumagem nos tira peso e dá a densidade adequada, enfim um chute abre a portinha enferrujada da gaiola e olha só: lá vamos nós, novinhos em folha. O medo era a pele antiga, saímos da crisálida com outra vibe, bem menos rastejantes, bem mais tendentes ao azul.

E ainda assim esse desdobrar de asas – esse que nos abre para festivais e montanhas-russas – não é suficiente para salvar vidas como a de Sean Cooper, o personagem morto em Cold case. Sean não precisava ser acolhido por gente que tivesse a molecagem de andar na corda bamba ou pintar-se de palhaço; precisava de um pai que se orgulhasse dele com a incondicionalidade que as crianças põem em orgulhar-se de seus pais – um pai que não o rejeitasse em nome de vergonhas corroídas de mofo. Sean precisava de colegas de corporação com a alma ainda tenra, sem dureza, sem espinho, sem rigidez, sem teia de aranha. Precisava de um amor com força de fênix autorrenovável, pronto para assumi-lo apesar de toda a ferrugem dos olhares e do sistema. Precisava (como todos precisam) cercar-se de corações macios, modernos, moldáveis, preparados para o aconchego, com a mesma receptividade sempre jovem dos animais e bebês, essas bolotinhas de amor. 

Acolher carinhosamente as novas experiências é coisa linda, acrescenta, mas não necessariamente jovializa. O que de fato coloca nossa biografia em modo Benjamin Button é acolher o outro: interesse no olhar, calor na voz, encantamento na escuta, o tempo sem correrias para a compreensão, o bom humor para a descoberta, a fofura de travesseiro para o abraço. Só isto salva a humanidade – amar-se sem destruir-se. Estar disponível como a manhã de sábado e não surda como a Inquisição medieval. Sem a curiosidade infantil de evoluir, ainda seríamos um bando de répteis que aceitam não ter luz só porque não é hora de haver sol.

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