sexta-feira, 22 de maio de 2020

Onze nazistas

Não Negativo Muitos - Imagens grátis no Pixabay

Diz um ditado alemão que, se há dez pessoas numa mesa, chega um nazista, senta-se e ninguém se levanta – então na mesa há onze nazistas. Adoro a simplicidade faca-só-lâmina desse ditado, que vai retinha na jugular e não deixa dúvidas, não abre margem de erro. Fascismos são como aquele vírus de filme que zumbiza as pessoas: uma vez feita a contaminação, o que existe de humano falece por dentro e sobra a bestialidade, a fome de destruição cega e surda. Ninguém fica parado na categoria "mais ou menos zumbi"; pode ser um autômato furioso ou aquele pasmacento que se mistura e segue a horda, se arrastando como imbecil. Pode ser zumbi ativo ou passivo, perseguidor ou estrupício: still zumbi. Ou bem você sangra, chora, pensa e o coração bate, ou bem as funções de vida se interrompem e o que permanece se limita à casca móvel. É-se zumbi ou gente.

Não estou aqui dizendo que fascista não é gente; estou dizendo que, dentro do universo "gente", é-se fascista ou não fascista – assim como, no grupo "mulher", ou se está grávida ou não se está. Não há fascista de Schrödinger, uma criatura que pode ter suas fascistices às segundas, quartas e sextas mas é o Martin Luther King encarnado às terças, quintas e sábados. O que pode existir (e existe com fartura) é nazista disfarçado, subnotificado, enrustido. "Puxa, mas o tio que sempre foi gente boazona, paizão pros meninos, alegria da churrascada agora é fascista porque fez uma piadinha de negro?" Não, querido: o tio fez uma piadinha de negro porque é fascista. Pode ser que ele não tenha consciência ou propósito, porém a convicção da superioridade de uma etnia já entrou ali, com carinha inocente, e já se naturalizou a ponto de suar pelos poros de uma piada. Considerando que vivemos em pleno e constante genocídio negro (João Pedro e João Vitor ainda ontem estavam aqui, e hoje são duas vítimas desse inferno ininterrupto), com que possível tranquilidade d'alma, com que nível aceitável de ignorância se ri de pessoas historicamente assassinadas, perseguidas? Se o mesmo tiozão viesse em forma de alemão dos anos 30 e contasse anedotas de judeu em seus salões, quanto você demoraria para reconhecer nele o nazista que nos acostumamos a identificar só de longe, em outros tempos, outras plagas, outros filmes? Sim, amado: não é preciso portar a suástica no braço para tê-la na ideia. Regimes de horrores não se constroem só com os que atiram na testa de alguém; são necessários muitos mais que estejam devidamente confortáveis para testemunhar, relativizar, normalizar e, eventualmente, ironizar o absurdo.

Não significa que nunca mais nos sentaremos à mesa com familiares, conhecidos, colegas, clientes e demais relações compulsórias (excluo aqui os amigos e amados porque esses a gente escolhe, né, fofos?), no caso de essas pessoas estarem infectadas pelo germe maldito. Significa, sim, que nunca mais nos sentaremos à mesa com seus pensamentos, falas, conceitos, piadas, posições, atitudes malditas. Significa que não dividiremos o ambiente com o fascismo existente nelas sem escancará-lo, sem pô-lo a nu. Não ouviremos brincadeirinhas homofóbicas, machistas, racistas sem pedir docemente que o interlocutor as desenvolva com explicações detalhadas – até que se engasgue, roxo, com o refluxo do injustificável. Não sorriremos amarelo ante a insinuação da barbárie; não compactuaremos nem com o mais leve elogio do extermínio; não fugiremos, por preguiça social, de espremer a afirmação cruel a ponto de a vergonha alheia rebentar em pus. É compromisso matrimonial com a humanidade: tornar óbvio o quanto a exclusão é cafona, botar holofote e ridículo na total falta de nexo dos recalcados, gargalhar da burrice que rejeita a ciência, relacionar as bravatas do macho branco a toda uma série de incompetências íntimas. Ideário fascista é uma Hidra de Lerna que se degola, crema e enterra, sem mais. Qualquer toleranciazinha faz as ramificações rebrotarem na deep web do tempo.

Os que têm como foco a destruição do outro não tiram férias. É nossa obrigação moral garantir que o curso da História os demita.

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