quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Como se fosse a primeira vez

Acabo de ver mais um episódio impressionante de Medicina extraordinária, um daqueles programas de fenômenos curiosos do Discovery Home & Health. Aprendi um fenômeno curiosíssimo: a incapacidade que certas pessoas têm para reconhecer rostos. Não estou dizendo memória ruim, distração, pouco talento para fisionomista. In-ca-pa-ci-da-de. Quem sofre do mal – chamado prosopagnosia – simplesmente não enxerga faces, vê apenas um amontoado de borrões, como naquelas reportagens em que a identidade dos entrevistados é preservada. Borrões com roupa, óculos, voz e cabelos em volta (únicas pistas que os portadores têm para distinguir amigos e familiares). O personagem focalizado, Mr. Cook, não nasceu com a síndrome: foi efeito colateral de uma operação no cérebro. Há mais de dez anos não diferencia os filhos de sobrinhos ou jovens outros. Se estão em grupo, precisa esperá-los falar para dirigir-se à pessoa certa. “O lado bom”, comentou o narrador da matéria, “é que Mr. Cook está sempre conhecendo gente nova”. O prosopagnóstico (ou lá como se chame) assentiu num sorriso, afirmando ser eterna novidade reencontrar os seus. Cada esbarrão em casa tem um arrepio de estreia.

É triste e bonito. Por um lado, aterrorizante – nossa estrada de lembranças costuma ser uma trilha de porta-retratos, que se convertem em âncoras inúteis para os “cegos faciais”. Quem enxerga canta os olhos do amado, tem fissura nas sardas da noiva, é louco na pintinha da bochecha, cai de quatro pelas pestanas ou pelo arrebitamento do nariz. Quem enxerga sabe a adolescência do filho pelas espinhas, o esforço dos pais pelas olheiras, os anos de casamento pelas rugas, a maldade do colega pelo risinho. Não ser cego, mas sofrer de face blindness, é assistir a filme tcheco sem legendas. Ficar órfão das primeiras referências. Ganhar o texto sem a página principal.

Por outro lado, não deixa de ser esquisitamente poético. Tanto nos apegamos ao dom de ver rostos que desistimos de vê-los. Já chega um relance para sabermos de quem se trata. Ô meu amigo Marcão! Meu velho amigo Marcão! dá cá um abraço – e lá vai o Marcão, contrariado, porque você não percebeu que sua testa apressada não tinha abraços previstos. Sábado nós vamos à festa, não vamos, Carlinha? – e a Carlinha desembesta a chorar porque você não pescou o início de depressão que nadava no fundinho dos olhos. Tentamos agregar na marra quem está com um “offline” escrito no nariz. Não tentamos nos chegar a quem está de olhar pidão e uma lágrima pendurada no nariz. Enxergamos, distinguimos, identificamos mas não lemos. Acomodados no traço familiar, na pista farta, no trecho “conhecido”, não nos damos ao trabalho de ser todo minuto apresentados a novas terras, novos céus, novas regras do jogo. Cometemos a cegueira dos que veem: tomar o às vezes como um sempre.

Para Mr. Cook não há sempre. Cada troca de roupa é o princípio de uma era. Um corte ou tingimento de cabelo é Big Bang. Faz-se a luz, aquele ser passa a reexistir para o pai (marido, companheiro, tio) em versão 1.0. Duro, duríssimo – e metaforicamente bom. Enquanto não aceitarmos o F5 como lema, olhando com a dependência da fome e a independência do desapego, não acertaremos a identidade de ninguém.

Incluindo daquela criatura no espelho, que ainda aguarda de você um convite para a reestreia.

6 comentários:

Marcelo Simas disse...

É, Fernanda: que eterno despertar, vive esse homem.
Não deve ser fácil perder referências tão profundas e necessárias para o estreitamento de laços entre as pessoas.
Creio, porém, que ele talvez compense isso de alguma forma. Talvez tenha aprofundado mais sua sensibilidade em outros aspectos para que possa conviver melhor e criar laços mais fortes que aqueles que que aparentemente ele poderia criar.

Marcelo Simas disse...

PS: Excelente tópico!

Bruno Costa disse...

Talvez o rosto seja a última das ilusões de uma identidade. Com certeza tem um lado bom e um ruim; é sempre ruim estar condenado num só. Nós por um lado, ele por outro. Lembrei da menina do filme "A Vila", que era cega, mas enxergava uma cor em algumas pessoas; uma cor distinta. Só lembrei... Achei o post bem interessante.

Matheus Laville disse...

Eu já passei na frente da pessoa e não conheci o rosto e o problema que fora 2 vezes e mais um quando eu sabia mais fiquei com vergonha de falar...Até hoje tenho vergonha dessa pessoa por causa disso...

Andy A. disse...

Que síndrome mais esquisita , deve ser angustiante paar quem a tem .
http://andyantunes.blogspot.com/

Capitu disse...

Interessante e curioso.
Muito bem escrito o texto. Parabéns!


http://blogdacapitu.blogspot.com