segunda-feira, 1 de junho de 2020

Ferida que dói e não se sente

Foto profissional gratuita de #flor #fogo # faísca #amor #quente ...

Na homilia de Pentecostes (ontem, para os cristãos, foi dia de Pentecostes), o padre topou com uma imagem tremendamente feliz ao comparar as línguas de fogo que baixaram sobre os apóstolos àquele fogo que Moisés, no Antigo Testamento, viu sobre a sarça – um fogo no qual a planta ardia, porém sem consumir-se. Mesmo para os que não são cristãos, a simbologia é forte, linda e evidente: o impulso que finalmente nos apaixona, nos estimula, não é algo que nos destrói; é uma força de objetivo constante, é uma aflição teimosa, perene, mas nunca uma doença, nunca algo corrosivo do espírito. Se o que nos move espalha vida, é o fogo certo: nossa força. Se corrói a nós e aos demais, fake fire: é um vício. 

Ler e ver notícias tem sido cada dia mais dolorido, mais penoso; mas, salvo em caso de depressão – que necessita de tratamento, antes de mais nada –, as angústias e indignações não podem paralisar-nos, não podem de modo algum virar chamas que nos consumam, que nos varram, que nos façam explodir metade em úlceras, metade em desalentos. É urgente que todas as paixões despertas se tornem, em nós, o fogo da sarça, o fogo que crepita sem apagar-se e sem consumir-nos. É urgente que os sofrimentos trazidos pela visão do mundo se labaredem por dentro em forma de projetos, se inflamem nas mais variadas vontades de participação e ajuda, se alastrem em campanhas felizes com a fúria emergencial da pólvora. Não podemos nos deixar incinerar, porém devemos nos permitir acender. Não há tempo para nos dissolvermos em cinzas, não há: devemos ser tudo que há em nós de brasa, de carvão, que ardeardeardearde com intenção e intensidade de combustível, levando-nos à frente, à frente. Precisa-se de todos; ninguém pode ser despedaçado pelo vento. Todos, todos, e TUDO em nós.

Sim, alguns estamos muito melancólicos, muito infelizes quase, porém é mais infeliz (porque inútil) sentar na raiva e concordarmos passivamente em ser cremados por ela. Se mais citações servirem de faísca essencial, fico com a do francês Félicien Marceau: "A felicidade é saber o que se quer e querê-lo apaixonadamente". Ou seja, não nos classifiquemos infelizes por querer, querer muito – mas sim, maravilhosamente ao contrário, vejamo-nos felizes apesar de tudo, apesar do horror, apesar dos maus, apesar dos males, por desejarmos a-pai-xo-na-dos o fim dos fascismos, por ardermos em ódio do ódio, por nos sentirmos tomados de uma sanha furiosamente poderosa de acabar com as injustiças, as fomes, os terrores. Não se trata de vingança, que é destrutiva (cremação na certa); trata-se do que temos de mais humano em completa catarse de humanidade, empurrado por sua pulsão mais instintiva de cuidar do outro. São profundamente felizes os que usam a consciência triste de um privilégio de cor para formar barreiras que protejam os perseguidos. São profundamente felizes os que doam sangue, tempo, voz, medula, os que se entregam de todas as maneiras possíveis em vida para que do outro lado não haja morte. É felicidade, sim – e não existe maior –, alumiar vários pavios de vontade que se encontravam ociosos e desconheciam as próprias razões, propagar um calor amoroso que inspira e abrasa, alastrar-nos em tantas causas e tantas frentes quantas couberem em nós antes de nos extinguirmos. É a suprema felicidade: não nos GASTARMOS, mas nos APROVEITARMOS. Vivermos enquanto vivemos e instigarmos quantas fogueiras pudermos, a serem deixadas em continuidade e herança para além de nossa carga disponível. 

Só isto nos chama: ser o incêndio capaz de justificar o oxigênio que nos alimenta.

Nenhum comentário: