Para meu imensíssimo desgosto, termina hoje a novela A vida da gente. Todo o tempo em que esteve no ar, fez jus ao título. Nada de histrionismo, nada de vilã de desenho animado, nada de núcleo cômico-roceiro, nada de vampiros e simpatizantes, culturas longínquas recheadas de sáris e deuses, tempos longínquos abarrotados de cartolas e anquinhas, nem mesmo as princesices e cangaceiros de meu saudoso Cordel encantado. Nem cidades cenográficas de praia eterna, nem cidades imaginárias de chocolates e roseirais, nem vidas que não a vida presente, o mundo presente, os homens presentes. De nenhum artifício – além de nós proprinhos – precisou a obra de Lícia Manzo para se estabelecer absoluta.
A vida da gente foi, no ótimo sentido, novela de esquina. Novela de vizinhança, de atravessar a rua e tropeçar na história de um personagem, de ir à padaria e esbarrar com o drama da protagonista, de pilhar na família o mesmo dilema do coadjuvante. Teve a briga da paixão sonhada com o amor sereno, teve a luta do amor correto contra o tempo errado, teve a guerra do corpo operado contra o sexo pretendido, teve a maternidade possessiva, a maternidade doentia, a de escolha, a de circunstância, a de adoção, a de inseminação, a sem vocação. Teve adolescente tardia e adulto precoce virando parente acidental no meio do caminho. Teve coma e morte, amizade e vida costurando novas genealogias. Gente se atando sem afeto e se desatando sem falta dele. Traindo qualquer alguém com qualquer algo e qualquer idade. Tendo qualquer surto em qualquer idade. Sobretudo falando – três, quatro, cinco vezes – a cada capítulo o mote maior de nossos capítulos pessoais: será que a gente pode conversar?...
Foi novela de conversas, como somos nós. Conversas cheias de apesares. De como Alice tinha o apoio dos pais adotivos em sua busca pela origem biológica, apesar do risco de decepções. De como Ana guardava um travo de pertencimento a Rodrigo, apesar do casamento marcado com Lúcio. De como Dora não podia continuar unida à irresponsabilidade cotidiana de Marcos, apesar de adorar seu capricho paterno. De como nos vemos irremediavelmente repletos de forças opostas em equilíbrio, opções contrárias de igual atração, rotas que estraçalham com cada um dos gumes. De como o nosso principal esporte é medir decisões pelo seu peso em palavras.
Ainda assim, a cena-chave de toda a trama se deu (esta semana) num quase-silêncio esmeradíssimo. Brigadas por culpa de desencontros amorosos, as irmãs Ana e Manu fizeram as pazes. No capítulo em que discutiram de morte, passaram longos minutos vomitando a alma uma na outra; assunto que não acabava mais. Trincheiras de argumentos. Acusações em jorro e em granada. Na reconciliação, tudo que era importante não era coisa de dizer: em segundos olharam-se, abraçaram-se e protagonizaram um dos mais bem redigidos scripts da história. Sem os excessos verbais com que vestimos o indizível. Sem intermediários gramaticais entre gente e vida. Sem nada que não fosse o que somos quando nus das folhas de parreira buscadas no dicionário.
Parabéns a Lícia Manzo pela novela que deu certo pelo básico: metade de nós é silêncio, a outra se fantasia de idioma. Para tecer a costura: tempo, tempo, tempo, tempo.
A vida da gente foi, no ótimo sentido, novela de esquina. Novela de vizinhança, de atravessar a rua e tropeçar na história de um personagem, de ir à padaria e esbarrar com o drama da protagonista, de pilhar na família o mesmo dilema do coadjuvante. Teve a briga da paixão sonhada com o amor sereno, teve a luta do amor correto contra o tempo errado, teve a guerra do corpo operado contra o sexo pretendido, teve a maternidade possessiva, a maternidade doentia, a de escolha, a de circunstância, a de adoção, a de inseminação, a sem vocação. Teve adolescente tardia e adulto precoce virando parente acidental no meio do caminho. Teve coma e morte, amizade e vida costurando novas genealogias. Gente se atando sem afeto e se desatando sem falta dele. Traindo qualquer alguém com qualquer algo e qualquer idade. Tendo qualquer surto em qualquer idade. Sobretudo falando – três, quatro, cinco vezes – a cada capítulo o mote maior de nossos capítulos pessoais: será que a gente pode conversar?...
Foi novela de conversas, como somos nós. Conversas cheias de apesares. De como Alice tinha o apoio dos pais adotivos em sua busca pela origem biológica, apesar do risco de decepções. De como Ana guardava um travo de pertencimento a Rodrigo, apesar do casamento marcado com Lúcio. De como Dora não podia continuar unida à irresponsabilidade cotidiana de Marcos, apesar de adorar seu capricho paterno. De como nos vemos irremediavelmente repletos de forças opostas em equilíbrio, opções contrárias de igual atração, rotas que estraçalham com cada um dos gumes. De como o nosso principal esporte é medir decisões pelo seu peso em palavras.
Ainda assim, a cena-chave de toda a trama se deu (esta semana) num quase-silêncio esmeradíssimo. Brigadas por culpa de desencontros amorosos, as irmãs Ana e Manu fizeram as pazes. No capítulo em que discutiram de morte, passaram longos minutos vomitando a alma uma na outra; assunto que não acabava mais. Trincheiras de argumentos. Acusações em jorro e em granada. Na reconciliação, tudo que era importante não era coisa de dizer: em segundos olharam-se, abraçaram-se e protagonizaram um dos mais bem redigidos scripts da história. Sem os excessos verbais com que vestimos o indizível. Sem intermediários gramaticais entre gente e vida. Sem nada que não fosse o que somos quando nus das folhas de parreira buscadas no dicionário.
Parabéns a Lícia Manzo pela novela que deu certo pelo básico: metade de nós é silêncio, a outra se fantasia de idioma. Para tecer a costura: tempo, tempo, tempo, tempo.
2 comentários:
Queria ter acompanhado a novela como deveria :\ Mas não tinha tempo, até pouco, ela coincidia com o horário da minha academia, e o máximo que podia fazer era bisbilhotá-la por uma aula e outra. A novela mostra o que muito se prega, afinal, que o tempo muda tudo, cura antigas dores, trás mais desafios, por que a vida dos personagens mudava a toda hora, mas com naturalidade diferente de outras novelas. Não dispenso psicopatas, gosto de Flora e Nazaré, e nem histórias absurdas, mas essa novela ganhou mesmo por conseguir se pôr tão próxima da gente *-*
Lindo texto, captou muito bem o que foi a novela, realmente lindíssima e própria de todos nós. Tb vou sentir saudades!
Postar um comentário