Um dos quatro ou cinco livros que venho maltratando no momento é A abadia de Northanger, romance de Jane Austen (mulher alguma pode deixar de passar por um Jane Austen na vida). A heroína, Catherine Morland, é construção primorosa, é o mais complicado tipo de protagonista: aquela que não tem um único excesso como traço distintivo. Não é de boniteza extrema, irretocável, ou feia tampouco; tem personalidade de pão de ló (nem rija, nem úmida, nem disforme), inteligência mediana, situação financeira pacatíssima, família equilibrada, bondade sincera sem exageros de polianice. Gente aflitivamente comum. E, como toda gente comum (ao menos da época), a bichinha se distrai lendo romances – especialmente os que tendem para o gótico. Natural. Nada como a mais grotesca das vidas emprestadas para fazer a harmonia das rotinas serenas.
Pois então. Certo dia, Catherine e seus amigos agendam passeio ao Castelo de Blaise, e ela se pré-deslumbra com as alegrias que a visita lhe irá proporcionar. O que achei mais saboroso foi a listagem de algumas possíveis fontes de prazer para a mocinha: “A felicidade de passar por estreitas e tortuosas galerias e ser impedida de continuar pela presença de uma porta com uma grade na frente. Ou até mesmo a felicidade de ter sua vela, sua única vela, apagada por uma súbita rajada de vento, e de ser deixada na mais completa escuridão”.
Há ilustração mais encantadora do quanto são desejáveis nossos apetites insaciados? Do quanto são queridos nossos limites? Do quanto são amáveis nossas barreiras? Catherine ansiava pela emoção inteira, pelo pacote total das heroínas de romance, incluindo seus perrengues e frustrações. Sim: sonhava com isso por não lhe faltar segurança no dia a dia. “Assim é mole”, diremos. Concordo que é mole, e também não sou daquelas que louvam a busca de adrenalina, nem das que caçam problema por esporte (ficaria deliciada, por sinal, de abraçar o cotidiano da senhorita Morland). Mas entendo que, se não precisamos exaltar as velas apagadas e os breus surgidos, não devemos, por outro lado, desprezar esses tropeços como diversões em potencial. É ruim achar a porta trancada, e excelente ter a curiosidade aguçada pela agonia da vontade. É má coisa ficar no escuro, e melhor coisa não há do que ser forçado a um sossego incompatível com energia elétrica. É horrível tomar recusas e ótimo ter de prová-las injustas. É triste levar críticas e maravilhoso trabalhar para desmenti-las. É penoso desfazer noivados e fantástico estar livre para laços mais legítimos. É sofrido esbarrar com doenças e duplamente libertador vencê-las em nome das novas prioridades.
Grades, chamas extintas, trazem exército de delícias na manga; promessas de mais largas habilidades, de outros melhores corredores. Coadjuvantes de si mesmos ficam, inaptos, retidos na alfândega. Protagonistas de carteirinha é que – exclusivamente – nascem com a senha do pacote completo.
Pois então. Certo dia, Catherine e seus amigos agendam passeio ao Castelo de Blaise, e ela se pré-deslumbra com as alegrias que a visita lhe irá proporcionar. O que achei mais saboroso foi a listagem de algumas possíveis fontes de prazer para a mocinha: “A felicidade de passar por estreitas e tortuosas galerias e ser impedida de continuar pela presença de uma porta com uma grade na frente. Ou até mesmo a felicidade de ter sua vela, sua única vela, apagada por uma súbita rajada de vento, e de ser deixada na mais completa escuridão”.
Há ilustração mais encantadora do quanto são desejáveis nossos apetites insaciados? Do quanto são queridos nossos limites? Do quanto são amáveis nossas barreiras? Catherine ansiava pela emoção inteira, pelo pacote total das heroínas de romance, incluindo seus perrengues e frustrações. Sim: sonhava com isso por não lhe faltar segurança no dia a dia. “Assim é mole”, diremos. Concordo que é mole, e também não sou daquelas que louvam a busca de adrenalina, nem das que caçam problema por esporte (ficaria deliciada, por sinal, de abraçar o cotidiano da senhorita Morland). Mas entendo que, se não precisamos exaltar as velas apagadas e os breus surgidos, não devemos, por outro lado, desprezar esses tropeços como diversões em potencial. É ruim achar a porta trancada, e excelente ter a curiosidade aguçada pela agonia da vontade. É má coisa ficar no escuro, e melhor coisa não há do que ser forçado a um sossego incompatível com energia elétrica. É horrível tomar recusas e ótimo ter de prová-las injustas. É triste levar críticas e maravilhoso trabalhar para desmenti-las. É penoso desfazer noivados e fantástico estar livre para laços mais legítimos. É sofrido esbarrar com doenças e duplamente libertador vencê-las em nome das novas prioridades.
Grades, chamas extintas, trazem exército de delícias na manga; promessas de mais largas habilidades, de outros melhores corredores. Coadjuvantes de si mesmos ficam, inaptos, retidos na alfândega. Protagonistas de carteirinha é que – exclusivamente – nascem com a senha do pacote completo.
2 comentários:
Poxa, cara! Seu texto é muito bom.
O que comentar diante de um primoroso relato acerca de uma das obras da riquíssima Jane Austen? Faltam-me palavras para dissertar algo além do que já relatou.
Finalizo enfatizando o que acrescentou no post: "Há ilustração mais encantadora do quanto são desejáveis nossos apetites insaciados?"
E ponha "quanto" nisso, viu!?
Um abraço,
Fernando Piovezam
http://seuanonimo.blogspot.com
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