terça-feira, 6 de março de 2012

Por um nariz

Há 393 anitos, nascia Cyrano de Bergerac – o escritor, soldado, poeta, duelista que Edmond Rostand retratou em sua peça famosa, narigudamente. Eu e você sabemos pouco de Cyrano; sabemos mais de Cyrano, a obra cheia de romantismos. A obra em que o protagonista se considera feiosão e, apaixonado pela prima Roxane, não tem coragem de escrever-lhe seus amores diretamente. Prefere emprestar as palavras ao boa-pinta Christian, que acaba conquistando Roxane com coração alheio. Quando a moçoila finalmente descobre que o verdadeiro alvo de suas ternuras é o primo narigudo... tarde demais. O sujeito já está pela bola sete. Talvez a mais triste história de ghost-writer de todos os séculos.

Mas apenas história. O Cyrano verídico penou à beça com o apêndice nasal – dizem que duelou umas mil vezes por causa da chacota –, porém não consta que o cujo lhe tenha estacionado a vida sentimental. Nós é que brincamos de Cyrano fictício, e botamos na conta de nossos maiores ou menores narizes a decisão de virar avestruz. Não posso ser bailarina clássica porque tenho coxas abundantes. Não posso dar a palestra porque tenho voz gasguita. Não posso ir à festa porque já estive em três com esse vestido. Sou muito alta para a equitação. Muito baixo para o vôlei. Muito gorda para noiva. Muito magro para lutador. Muito nada para tudo; acabou-se. Baixamos a cabecinha e lá vamos, acalentados pela preguiça de resignação, terceirizar os sonhos gorados no sucesso de nossos Christians.

As mães que se desejavam pianistas (ou advogadas, ou ginastas, ou modelos) e pela pobreza, pelo casamento, pela fraqueza de tempo ou de patrocínio, abdicaram dos projetos para acampar na carreira bem-sucedida dos filhos. Os filhos que se imaginavam dançarinos de salão, mas pela fobia de ir à luta se esconderam no consultório equipadíssimo de papai e vovô doutores. As amigas que se fantasiavam mochileiras e, porque educadas para a solidez e estabilidade da repartição pública, exercem o fetiche pelas narrativas dos que deram a volta ao mundo. As esposas que se pretendiam diplomatas e, na falta de cabeça e gana de estudo, moram parasitas nas homenagens aos maridos. Cyranos: gente que, na linha de saída, se decidiu fracassada no intento e indigna de mandar bala; gente que por momento de contingência, por feiura de circunstância, por um trauma, por um triz, por um nariz não ganhou o direito de vencer a corrida, o sagrado direito ao primeiro passo. O passinho que muito talvezmente levasse aos já abertos braços de qualquer Roxane.

É fato que devemos sempre nascer com algum nariz que sobre. Pouco importa. Melhor pra nós, que podemos metê-lo até onde (inicialmente) não fomos chamados.

2 comentários:

Marco disse...

não conhecia esse cara

http://rocknrollpost.blogspot.com/

OGROLÂNDIA disse...

Uma postagem bastante interessante. As vezes os nossos maiores obstáculos são postos no caminho pela nossa própria imaginação.
O medo do fracasso estraga a experimentação.