quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Era para agora já ser hoje


De Mia Couto: "O que espanta não é a loucura que vivemos, mas a mediocridade dessa loucura. O que nos dói não é o futuro que não conhecemos, mas o presente que não reconhecemos". Muitíssimo bem expresso, Mia; é a mediocridade, a pequenez inútil da atual loucura que nos entontece, essa loucura que nem se pode dizer atual, por ser repeteco enervante de histerias coletivas de há algumas décadas – de há alguns séculos, melhor dizendo; temos afinal uns terraplanismos psicóticos que vestiriam feito luva em tempos inquisitoriais. Como andaram suspirando por aí alguns memes, era para estarmos discutindo teletransporte, diferentes categorias de clonagem, carros voadores, colonizações planetárias, sabe-se lá que tipo de doideira já ou pré-realizável que até ontem morava apenas em ficção científica braba; mas não, estamos aqui esmurrando as mesmelelessíssimas facas de ponta fake que continuam nos roubando o tempo crucial da evolução humana, estamos aqui nos digladiando com gente que parou o download na fase neanderthal, com gente que devia achar lindo ter a cara bexiguenta de varíola, conduzir navio negreiro, proibir estudo feminino, queimar bruxa na fogueira, exterminar indígenas, botar homossexuais em campos de concentração. Olha, pelamor: só não peço pra descer do bonde chamado planeta porque ainda não topamos com alternativa viável (aliás, culpa de quem?).

A esta altura já perdemos as ilusões jetsonianas de que, na vida adulta, nem precisaríamos aprender a dirigir porque viajaríamos em supermáquinas teleguiadas; mas era necessário que despencássemos das nuvens AND de um terceiro andar? Só nos dói por brincadeira esse "futuro que não conhecemos", e que na realidade conhecemos em parte sim, visto que conversamos perfeitamente com pessoas de outros países em tempo real, olhando nos olhos; dói-nos até o abuso, entretanto, o "presente que não reconhecemos" em ações que poderíamos jurar irrepetíveis, pensamentos que julgávamos extintos por algum meteoro civilizatório que não houve, (pre)conceitos cujo DNA ficou dormente nalgum âmbar e que volta e meia são reativados e disseminados em novas espécies mais perigosas. Dói-nos a fratura exposta entre o que deveríamos ser e o que somos: antigamente o mundo atual não teria dinossauros genocidas em presidências, antigamente nunca mais haveria prenúncios de guerras mundiais, antigamente não se falaria mais em tretas EUA X Rússia em pleno 2022, nem estaríamos lembrando a existência da OTAN sem ser em prova de Geografia, nem ouviríamos a palavra comunista como um xingamento ou ameaça pairante. Antigamente era para, agora, o aquecimento global ser um consenso e as providências, imediatas; era para girafas serem deixadas na África por óbvia unanimidade; era para pessoas quase se engalfinharem para vacinar as crianças à mais remota suspeita de epidemia; era para a urna eletrônica ser cem-por-centomente decantada como o primor das invenções. Era para estarmos aparando arestas, dando uma demãozinha de tinta, em vez de configurarmos pó que o pó venera e ao pó eternamente volta.

Era para agora já termos retornado ao nosso futuro de direito, brigando com robôs mal-humorados e criando legislação contra batidas de automóveis voadores; não era para lutarmos medievalmente numa Caverna do Dragão cujo portal vemos tremeluzir de vez em quando apenas para desmanchar-se no ar.

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