terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

We can't breathe


Tocante demais quando, em capítulo recente de Um lugar ao sol, o superfofo Ravi – que acaba de ver morrer a ex-namorada Joy – ouve do amigo Christian que ele precisa dormir, e devolve: "Difícil não é dormir, difícil é acordar. Toda vez que eu acordo, recebo de novo a notícia de que a Joy morreu" (a autora me perdoe inexatidões; cito de cabeça). Consigo compreender, ainda que roçantemente, o sentimento de Ravi – não porque tenha perdido alguém amado tão de perto, mas porque o Brasil (minha maravilhosa cidade sobretudo) não nos deixa acordar, respirar, sem receber de novo e de novo e de novo a notícia de que um rapaz foi MASSACRADO numa praia por ter chegado ao local onde trabalhara reclamando seus direitos. SEUS DI-REI-TOS. Uma barbárie tão demasiada, tão imensa que a gente não acaba de acreditar nunca, a gente fica puxando em vão um ar rarefeito e arregala o coração num espanto que mantém a ficha do horror suspensa nesse ar.

Moïse Mugenyi Kabamgabe tinha verdíssimos 24 anos; era congolês, adotado pelo Brasil em criança, já que viera em criança do país natal com a família que buscava melhores condições. E foi o Brasil, o Brasil! que matou esse filho, como aproximadamente exclamou a mãe de Moïse em sua dor dilacerante. Não apenas matou: espoliou-o de um direito seu, negou-lhe o pagamento do trabalho honesto, amarrou-o, espancou-o, castigou-o em plena luz do dia pelo delito de ser pobre e negro e africano, e depois da morte continuou a castigá-lo com reiterada selvageria, enquanto os negócios do quiosque aparentemente seguiam a pleno vapor. Uma epítome redonda do que o Brasil fez e fazia desde quase os primórdios da invasão portuguesa – espoliar jovens negros africanos, explorá-los, espancá-los, negar-lhes dignidade a mais básica, e depois da morte de uma geração e de outra e de outra continuar a castigar-lhes a memória e a descendência com reiterada selvageria, enquanto os negócios plantadores ou industriais ou comerciais seguiam e seguem a pleno vapor (porque, claro, a economia nunca pôde parar). Que história desgraçada é esta nossa, quantos milênios levaremos para expurgá-la? Quando deixará de ser mais e mais da velha maldição miseravelmente naturalizada? Que século é hoje?

Como disse uma querida amiga, está difícil respirar depois da morte – aliás: do assassinato – de Moïse, mais um asfixiado literal e metafórico de nossa terra. Está inviável crer que aconteceu de verdade, em pleno verão carioca de 2022, com o mesmo nível de perversidade e de menosprezo pela vida humana com que teria ocorrido há duzentos ou trezentos anos. Lidar com as toneladas de consciência do que ocorreu há duzentos ou trezentos anos nos amargura fundo, nos envergonha até a última mitocôndria; lidar com a permanência tão sórdida, tão afrontosa da barbárie já na terceira década do século XXI é inqualificável, é insuportável, indescritível. Simplesmente não há como digerir o que só pode ser vomitado em forma de manifestos, passeatas, quebra-quebras, cessação completa de turismos e trânsitos, suspensão total da Barra da Tijuca do mesmíssimo modo como ela parece suspensa no tempo, presa num vórtice de crueldade ancestral, congelada e inutilizada para a civilização. Pois que fique congelada, paralisada, impedida, bloqueada, cancelada enquanto não se providenciar a mínima justiça no caso de Moïse, cuja memória continua reclamando simplesmente o que lhe pertence.

Mais uma parcela da conta que não se sabe se o Brasil um dia chegará a saldar.

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