segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Um lugar próprio


São versos do poeta polonês Miron Białoszewski, na tradução de Aleksandar Jovanovic: "Carrego em mim/ uma espécie de/ lugar próprio./ Quando o perder/ não mais existirei". Achei uma linda representação do que é estar vivo em franca plenitude, interna ao menos – carregar em si um lugar próprio, tipo de autoabrigo emocional ou casa psicológica a que não se derruba com as grandes facilidades do universo físico; transportar uma certeza tão completa e tão sua a respeito da porção habitada no mundo (ou independentemente do mundo) que o ambiente exterior pode até constituir um coadjuvante de peso, mas a alma inteira é uma residência portátil.

Precisa-se, no matter what, carregar em si um lugar próprio. Convém que nos conheçamos até o ponto da self-portabilidade que nos torna mais maleáveis para fatos e, exatamente por isso, mais resistentes. Não se trata daquele papo detestável de resiliência com que frequentemente nos coachizam, e com que procuram disfarçar os efeitos da crueldade sistêmica – romantizando como mérito e esforço o que é basicamente a sobrevivência de quem não tem grande escolha. Trata-se de saber-se sem que isso esteja amarrado a uma utilidade de luta, um saber-se prévio, autossustentável, convicto, saber-se porque sim, porque alguém que não se sabe facilmente se desestrutura, ou antes: não chega a estruturar-se; não se estruturando, torna-se desmanchável numa foto, numa fala, numa comparação, num sopro. Uma pessoa que não carrega em si seu lugar, que não guarda a tiracolo uma integridade à prova de ventos – um núcleo mínimo, uma verdade essencial –, com forte probabilidade adotará qualquer raiz e ficará à deriva com qualquer perda, além de considerar como ofensa a integridade dos que se enraízam. Quem não aquieta seu tornado particular tende a levar tudo de arrasto.

Saber-se é ancorar-se no melhor sentido: acatar seu próprio tempo, olhar firme nos olhos do próprio desejo, estar confortável no silêncio externo porque o interno não estrondeia, proceder a uma autoleitura sem o medo que leva à condescendência e sem a ansiedade que conduz à implosão, acompanhar-se a todo momento com a satisfação de quem não receia o tédio. Uma vez que se transporta no peito todo um trailer mobiliado e embagajado de repertórios, pouco se teme a viagem; anda-se com um suprimento de si bastante farto de recursos contra a carência que sabota suas chances, contra o preconceito que materializa recalques, contra a insegurança invejosa que não fixa o olhar num trajeto futuro, contra o ódio que não perdoa realizações das quais não participa. Um lugar próprio é bem isto: refúgio e vacina, veículo e armadura, espaço mental que nos pertence invulnerável e dentro do qual o ego, crina ao vento, se abandona.

Um lugar onde o eu não é somente carona.

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