sexta-feira, 27 de abril de 2012

Dedicação exclusiva

Saio do metrô e mergulho com gula na feirinha de artesanato que circunda a estação. Novidades, sempre. Saias, colares, boleros unidos para ameaçar minha saúde financeira. E os produtos de todas as semanas, os mais vários. Há uma barraquinha, por exemplo, especializada em camisetas – brancas e pretas – estampadas com dizeres famosos. Passando em frente, é inevitavelmente com uma citação de Clarice Lispector que eu esbarro: “Não tenho tempo para mais nada. Ser feliz me consome muito”.

Adoro a fala de Clarice porque sou bastante dessas – capaz de consumir o tempo inteiro sendo feliz sem o menor dos tédios. Podem argumentar que todos seriam, mas não. Existem, e não são poucos (proliferam, aliás, a olhos vistos), os viciados em aborrecimento. Uma gente que tem necessidade recôndita de amofinar-se o dia todo; seja porque é portador do célebre “pavio curto”, e leva demasiado a sério o “viver é lutar” de Gonçalves Dias, seja porque carrega a Síndrome da Culpa Eterna e crê que não se pode ser pessoa cidadã e decente sem ganhar o pão entre pesados fardos, sem atuar como resolvedora universal de perrengues, sem estar integralmente em guerra contra reumatismos, malcriação dos filhos, perseguição do chefe. Tem tanta gente que acha pecado uma tiradinha de férias, que acha pouca-vergonha um emprego só de prazeres, que acha ilusão de ingênuos um casamento 99% de harmonias. Tanta gente provavelmente convencida de que plena saúde, extrema felicidade e muita sorte são coisa do encardido.

Não caio nessa. Tenho natural melancólico, mas nada curtidor de problemas; prefiro apenas o sorriso à gargalhada, gosto da alegria mais romântica e mais doce. E vivo na inteira convicção de que nada faz mais bem à humanidade do que emprego e relação perfeitos. Sem essazinha de “conflitos necessários”. Não tenho tempo para conflitos necessários. Quero que não haja necessidade de conflitos, como deve ser: aluno obedecendo, produzindo, caprichando; chefe respeitando; equipe colaborando; marido (ou namorado) mimando; esposa (ou namorada) retribuindo. Não me venham dizer que não tem graça – que mané não tem graça! essa é a desculpinha que inventamos para justificar nossa própria incompetência em polir as arestas, tomar vergonha na cara e ser felizes de uma vez por todas. Ninguém se atreva a dizer que isso é morte. Isso é a única possível e adequada vida. Mas e os que penam com agruras que não buscaram, que não cultivaram, como doenças, maldades/ trapalhadas de familiares e quetais? Pois muitos desses se tomam como mais felizes do que outros que, humilhados pelo sofrimento alheio, tratam de supervalorizar o seu próprio. Porque felicidade não é sentar esperando a (improvável) ausência de sofrimento. É fazer lindamente sua parte e não dar quase nenhuns direitos ou cartazes ao que não se pode controlar.

Olhem, já aviso. A felicidade que defendo ser tão urgente, tão fundamental e imediata, e tão superior a quaisquer tristezas educativas, nada tem de hedonista ou egoica. Não se trata (como muitos maniqueístas ansiosos podem crer) de garantir o seu dinheirinho na megassena e fugir pra Paris, que se dane o resto. É o contrário. É querer, de preferência, puxar o mundo inteiro para um estado de férias em Paris, mas sem esfregar na cara do universo o supremo esforço físico e moral que se coloca na empreitada. Desejar o contentamento mundial, e fazer por onde tê-lo, sem azedar o prazer de outrem com sua expressão de mártir. Felicidade é negócio para profissionais: tem que amar, tem que aceitar, tem que receber, tem que fazer diariamente um juramento de renúncia à culpa, tem que continuamente renovar os votos, tem que entender que a sua não expulsa a alheia (e vice-versa), tem que repetir a si mesmo que ela existe suficiente no planeta para suprir a todos, e sobrar. Felicidade não é para amadores. Não é para amantes. É para quem a abraça como esposa e lhe promete ser fiel na riqueza e na pobreza dos dias, twenty-four-seven, como dizem falantes de inglês. É para quem encara a responsa de nisso consumir-se sem tempo para amarguras tentadoras que nos disputam o espírito.

Até que a morte não mude coisa nenhuma.

Um comentário:

Milena Eich disse...

Encantador. Imposssível não sorrir.
Obrigada.