segunda-feira, 30 de abril de 2012

Bem servidos

Outro dia, em Avenida Brasil, Nina – a “Condessa de Monte Cristo” que está se fingindo de serviçal abnegada na casa da vilã Carminha – acordou a patroa com bandeja caprichadérrima, musiquinha suave e um sorridente “Quer ajuda para se vestir?”. A outra fez cara de estranheza, entre surpresa e encantada: “Sempre me vesti sozinha”. E Nina, convincente como os vingativos que plantam confiança antes do créu final: “Ah! então a senhora nunca soube o que é ser bem cuidada”.

Olha, cá entre nós. Todo mundo curte umas boas mimices de vez em quando, gosta primordialmente de atenção legítima – o maior dos maiores luxos –, se possível acompanhada de algumas consequências desse olhar que perscruta: uma aparente adivinhação de pensamento aqui, uma surpresinha à mesa acolá, a compra de sua geleia favorita, de seu xampu preferido, a oferta de novo talher mesmo sem se ter atinado que o outro caiu, a agilização de gentilezas, a providência de supérfluos adoráveis. Bom para todos sentir-se percebido, enxergado nas miudezas de desejo, desde que o percebedor mantenha a discrição dos mordomos ingleses e não saia divulgando suas predileções. Até aí estamos de acordo. Mas o bom percebedor, mesmo, saberá o ponto em que deve renunciar à sua condição de essencial em nome da sagrada independência alheia. Eu disse que atenção é o maior dos maiores luxos? que seja; incluamos nisso, porém, a atenção suprema de respeitar o terreno minado da privacidade.

Não concebo falta de privacidade, e de algumas autonomias, nem nas relações mais íntimas – que dirá nas de ocasião. Simplesmente não me ajeitaria como uma das Marias Antonietas da vida, e nem pela inconveniência de perder a cabeça, mas pela chatice de ter alguém sempre mais a par da gente do que a gente mesma. Ajudantes/ secretárias com acesso a gavetas, prateleiras? Pesadelo. Armário aberto é quase a gente nua. Quer ver outra maçada? aquelas sapatarias onde o vendedor insiste em ficar de joelhos a nossos pés, calçando-nos todos os pares. Amofinação. Para evitar a sensação constrangedora de ter um valete ou mucama, assim que chega o sapato pedido eu lanço mão do cujo, e não deixo espaço a que nenhum vendedor me faça de Cinderela. Aceito, sim, que enfie os cadarços do tênis (essa arte desconhecida) e só. Outra chateação, talvez maior, é o garçom não se limitar a pôr as travessas na mesa: começar também a montar-lhe o prato. Lá sabe ele se quero mais ou menos arroz, menos ou mais cenoura, se aceito batata, se gosto de palmito? Que irritação terrível é só poder dosar verbalmente (dosagem relativa, dependendo da rapidez do garçom) cada um dos bocadinhos da refeição! Tem a ver, claro, com alguma necessidade de controle, ou bastante. Mas eu podia estar matando, eu podia estar criando bombas de hidrogênio, eu podia estar planejando dominar o mundo, pelo menos um ou dois continentes. Podia estar monitorando a vida de um ídolo, estar querendo colonizar a rotina do marido, da irmã, da amiga, do primo. E não: só peço, humildemente, para ser senhora absoluta, imperatriz e suserana dos pratos que como, dos sapatos que calço, das roupas que visto; rainha de meus armários, dona e visitante única de minhas gavetas. Só quero que me deixem cuidandinha do que me cabe. É demasiado?

O bom serviço nunca é demasiado. Gentilezas terminam onde, em cada cliente, começa o ponto de nudez.

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