Não o fazia para mostrar-se, isso se via; lançava ao redor uns olhares que nitidamente espiavam para dentro, vazios de quase todo contato externo. Arrumadinha, mas sem exagero. Sobrancelhas desenhadas, porém não a tal ponto que fugissem ao natural. Olhos grandes, grandes, enormes às vezes. E lá ia a senhorinha cantando no ônibus, cantando em seu banco, de si para si. Não só cantando: entremeando a melodia com assobios perfeitos, afinados de dar vergonha em sabiá. Limpos. Agudíssimos. A música não era de minhas conhecidas, e no entanto soava tão familiar pelo clima de antigamente. A letra em inglês, um “when I’m feeling blue” aqui e acolá, uns trejeitos de Louis Armstrong ou Nat King Cole, um quê de Bing Crosby cantarolando para Grace Kelly, uns arranjos que tiram a gente para rodopiar com Fred Astaire. Não era “True love”, mas parecia. Não era “Cheek to cheek”, não era “As time goes by”, mas parecia. Parecia qualquer classicão americano que entra em CD de Rod Stewart. E mesmo eu – eu que me irrito tão extremamente com essas “trilhas sonoras obrigatórias” de ônibus ou metrô; eu que me lambuzo tanto de silêncio – mesmo eu não me amofinei um tico com o assobio da senhorinha, que se impunha quase ao meu lado. Inclinei até a cabeça em direção à janela, e respirei saudade.
Respirei saudade, embora com alívio. Aquele alívio de esbarrar com as coisas antiquadas bem aqui no meio do futuro. Sabe o futuro que imaginávamos quando crianças, que povoávamos de soluções milagrosas? ficamos adultos e ele nos atropela; isso em todas as gerações, mas pior agora, que somos um bando de criaturas plugadas cada qual em sua Matrix. Conectadas a seres longínquos, trazidos no bolso, e desconectadas do vizinho de banco. É o império absoluto – talvez irreversível – da descortesia, da deselegância, do nivelamento por baixo. Então como faz bem encontrar esses emissários de outros tempos! Não se trata de querer voltar a eles; trata-se de constatar, esporadicamente, que a humanidade é capaz de não esquecer as memórias acumuladas, é capaz de relembrar velhas inocências, está apta a invocar suas boas tradições. O que o passado tem, o que nele nos conforta, é o talento de provar que há (pois já houve) alternativas para nós mesmos. Vê-lo é nos ver em versão possível, é encarar aquilo de que já fomos capazes. Para o mal também; mas o foco de hoje não é o mal. São aquelas doçurinhas que praticávamos e que nos renovam as esperanças quando vistas – mais ou menos o efeito de sentir cheiro de terra molhada na própria rua, para quem acreditava viver numa selva de cimento irrecuperável.
Não é nostalgia achar consolo em outros tempos; nostalgia é crer que morremos neles. Que foram nosso princípio e fim, que só restaram zumbis e trogloditas a partir de determinado momento histórico. Era diferente o caso da senhorinha do ônibus, aparentemente satisfeitíssima em seu próprio instante. Tanto que seu esporte não era resmungar: cantava. Nem arengava ressentimentos, nem emudecia com o olhar triste, infrutífero, das saudades sem cura. Comemorava com o melhor dos vinhos antigos o fato de termos chegado até o agora.
E vivido pra cantar.
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