Hoje é Dia da Terra, e ela brinda a si mesma com seu vinho preferido: chove, chove, chove. Houve tempo em que eu não soube se era dia do planeta com maiúscula, se era o da terra-com-minúscula em que pisamos ou – para insistir na minúscula – se era da terra-pedaço-geográfico que nos vê nascer. Dúvida cruel, de criança. Se bem que importa pouco. Seja terráqueo, terrestre, terreno ou pátrio, o consenso é de que estamos num dia telúrico. “Telúrico” no sentido de feminino essencial, de tudo que é umbigo, ventre, origem. Tudo que concebe, tudo que gera, tudo que dá meios, tudo que nutre, tudo que incuba. Tudo que nos leva no colo por um tempo ou para sempre, tudo que nos abriga as raízes literais e metafóricas, tudo que serve de base às nossas gestações perenes. Tudo que faz viver e, abundantemente, vive.
Em qualquer acepção de “terra”, sou telúrica. Se a entendermos como planeta, serei aquela que tem nojo de Globo repórter desbravando áreas virgens, sujando de contato humano os extremos limpos do mundo apenas para saciar curiosidades. Amo mais a pureza que o conhecimento, e estou pronta a abdicar de todo direito de informação se cada naco de Terra, em troca, ficar inocente de nosso contágio. Reverencio tão mais o planeta quanto menos nosso ele for. Quanto menos ceder de seu projeto original a nossos caprichos de asfalto, ao cinza de nossas avenidas. Quanto menos abrir mão, quanto menos abrirmos estradas. É boa coisa, a ciência; é excelente coisa tomarmos pé do que nos cerca; melhor coisa, ainda, e insubstituível, é deixarmos o que nos cerca em pé, em plena posse de si mesmo. Tendo de escolher, escolho a Terra sem a gente, por mais que não fosse impossível o contrário. Escolho que paremos para que ela prossiga, fiel, inteira; escolho livrá-la do amor esganado que a destrói.
Se compreendermos “terra” como o chãozinho que nos dá base, quanta amizade também lhe tenho! Como o cheiro dela molhada me preenche, me estufa de vida; como me dá lembranças da infância brincada em jardim, que aprendeu cedo a reconhecer folhas e fazê-las de bonecas! Com que vaidade colhi feijõezinhos dos mesmos que eu plantara, com que ânsia ia checar os avanços de cada “filho” no quintal! Mesmo em apartamento, ainda não entendo a rotina sem azaleia e jasmim; ainda planto e acompanho feijões, ainda sinto igual orgulho de lhes dar terra e não panela. Ainda tenho a vibração infantil de (re)descobrir o velho ciclo.
Quanto à terra que é pátria, nossa geografia de nascimento, eu bem que queria ter tão bons dizeres. Por me faltar arte de hipocrisia, não tenho. Se é bonito e natural que amemos nossa (como dizer isso sem cafonice?) nação, pois que a amemos, então, com a prerrogativa da verdade: cobrindo de respeito sem mimar de elogio. Mas há algo materno nessa última terra que posso celebrar sem restrições – o que poderia ser, que é belo somente por si? a língua. Ela, e só ela, é nosso mapa. Só ela, que já chamaram de flor, sabe ser raiz. Quando nos molham – quando nos emocionam –, é o primeiro cheiro que sobe; é a voz na qual xingamos, é o som em que gememos, o sim em que nos declaramos. Nossa casa e cartório. A certidão de pensamento.
Feliz dia de nossas terras à vista. Plantemo-nos – e dar-se-á nelas tudo.
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